Verdades e mentiras sobre a lei que tenta endurecer a pena de quem mata no trânsito

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Por Márcia Pontes, especialista em trânsito

Bastou a notícia da publicação da Lei 13.546/2017, conhecida como a lei “Não Foi Acidente”, sobre a tentativa de punição mais dura para quem mata embriagado no trânsito para que começasse a viralizar os equívocos pelas redes sociais. Os áudios e informações em reportagens que afirmam que acabou a fiança para quem é flagrado dirigindo embriagado, que o condutor é preso e já passa a cumprir de 5 a 8 anos de reclusão não são verdadeiros. A nova lei sequer alterou a pena para quem dirige sob a influência de álcool, com a capacidade psicomotora alterada e até para quem mata no trânsito se for homicídio culposo. O Código de Trânsito tem conexão com o Código Penal, que no seu artigo 44 determina que, independente do tempo de pena no homicídio culposo, a pena privativa de liberdade (que seria a prisão, a cadeia), é substituída pela pena privativa de direitos (prestação de serviços comunitários e afins).

Para dar ar ainda mais dramático, o leigo que o gravou os áudios que viralizaram pelas redes sociais chegou a falar em “alerta geral”, avisa que quem for flagrado dirigindo embriagado já vai dormir na cadeia, não terá mais direito à fiança e cumprirá pena de 5 a 8 anos de reclusão. Muitas manchetes anunciavam o “aumento de pena para quem dirige embriagado” e, pasmem, até escritórios de advocacia colocaram vídeos no youtube afirmando que, a partir do dia 20 de março de 2018, quando a lei entra em vigor, “não haverá mais fiança, nem a suspensão condicional do processo e nem transação penal para beneficiar quem mata embriagado no trânsito.” Para desfazer essas mentiras e explicar à população de um jeito que todos entendam, decidi escrever essa postagem.

Na prática, a nova Lei 13.546/2017 que entra em vigor em 19 de março de 2018, não muda nada do que já vinha acontecendo antes em relação a quem bebe, dirige, provoca um acidente de trânsito e mata: em alguns casos, o motorista nem vai preso na hora e responde ao processo em liberdade. A fiança continua existindo e o condutor embriagado continuará saindo pela porta da frente da delegacia mesmo tendo acabado de matar alguém no trânsito. No prazo máximo de até 5 dias ele receberá a CNH de volta e poderá continuar dirigindo. A Lei 13.546/2017 também não aumenta a pena para quem dirige sob a influência de álcool ou com o estado psicomotor alterado. O que ela faz é criar uma qualificadora para o crime de homicídio culposo para quem mata no trânsito quando dirige embriagado, mas a pena de 5 a 8 anos só será aplicada pelo juiz, depois que o motorista for julgado na Justiça. Mesmo que o motorista que matou no trânsito seja condenado por homicídio culposo, o artigo 44, inciso I do Código Penal diz que as penas privativas de liberdade (que seria a prisão, a cadeia) poderão ser substituídas por penas privativas de direitos (prestação de serviços comunitários, prestação pecuniária, perda de bens e valores, a interdição temporária de direitos e a limitação de final de semana). Independente do tempo de condenação.

A primeira mentira: aumentou a pena para quem dirige embriagado

Para começar, a Lei 13.546/17 não mexeu em nada no que diz respeito ao motorista que dirige embriagado. Os artigos do CTB que tratam sobre isso são o 165 (dirigir sob a influência de álcool, drogas e até remédios controlados que causem dependência) e isso nunca deu e nem dará cadeia, mesmo com a nova lei. O motorista será notificado por infração gravíssima multiplicada por 10, multa no valor de R$ 2.934,70, terá a CNH recolhida por, no máximo, 5 dias, e será aberto processo administrativo no Detran para a suspensão do direito de dirigir por 12 meses. O carro só será guinchado se um motorista sóbrio não vier buscá-lo no momento da autuação.

Outro artigo do CTB que trata da embriaguez ao volante é o 306, crime de trânsito por dirigir com a capacidade psicomotora alterada. Nesses casos sim, o motorista é autuado em tudo que tem no art. 165 e conduzido à delegacia de polícia para que lá receba voz de prisão pelo delegado e seja indiciado por crime de trânsito. A nova lei não alterou em nada a previsão de pena para crime de trânsito: detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. A fiança continua existindo: se o condutor tem dinheiro ele paga a fiança e sai pela porta da frente da delegacia. Se não tem, vai para o presídio.

A segunda mentira: não existe mais fiança

A fiança continua existindo tanto para quem é flagrado dirigindo embriagado e até para quem mata alcoolizado no trânsito. A nova Lei 13546/17 não mexeu em nada disso como se divulga equivocadamente pela internet! Segundo a Constituição Federal e o Código de Processo Penal só são inafiançáveis os crimes hediondos, de racismo, injúria racial, tortura, tráfico de entorpecentes e de tortura. Crimes de trânsito não são inafiançáveis.

A terceira mentira: a pena para quem mata alcoolizado no trânsito aumentou para de 5 a 8 anos

Nem no tempo de pena para quem mata embriagado no trânsito a Lei 13546/17 mexeu! Ela apenas acrescentou o § 3º ao art. 302 do CTB, que não pode ser lido isoladamente do artigo e do caput, e que torna a modalidade de homicídio culposo qualificada. Vejam como é hoje e como ficará depois que a lei entrar em vigor:

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Como todos podem ver, o tempo de pena previsto para matar alguém no trânsito continua o mesmo e isso não vai mudar com a Lei 13.546/17. A única coisa que muda é a inclusão do parágrafo 3º no final do artigo 302, qualificando o crime de homicídio culposo para quem mata dirigindo alcoolizado no trânsito.

§ 3o Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas – reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Isso significa que durante o julgamento, na hora de proferir a pena, o juiz levará em conta que o agente (termo usado no Direito para se referir à pessoa que cometeu o crime) estava embriagado quando dirigiu e provocou a morte de alguém. Isso vai pesar na dosimetria da pena, mas só quando o acusado for a júri popular.

A quarta mentira: todo motorista que causa lesão corporal ou mata no trânsito pega cadeia de 5 a 8 anos

O fato é que a pessoa que mata no trânsito mesmo estando embriagada, não cumprirá, obrigatoriamente, de 5 a 8 anos de reclusão. Isso porque o artigo 44, inciso I, do Código Penal, diz que “qualquer que seja a pena, aplicada, se o crime for culposo” (e para qualquer tipo de crime culposo), as penas privativas de direitos (serviços comunitários e pagamento de cestas básicas, por exemplo) substituem as penas privativas de liberdade (pena de prisão, cadeia).

Neste ponto, a nova lei praticamente choveu no molhado porque o parágrafo que pretendia criminalizar qualquer dosagem alcoólica no sangue foi vetado pelo Presidente da República. No mais, a lei 13.546/2017 apenas copiou o texto do art. 59 do Código Penal e o colou em forma de § 2º no art. 291, recomendando ao juiz que na hora de aplicar a pena para quem bebe, dirige e mata dê especial atenção à culpa,às circunstâncias e à consequência do crime. No art. 308 passou a considerar como crime o cavalo de pau e empinar, e acrescentou um parágrafo ao art. 303, que passou a qualificar o crime de lesão corporal grave ou gravíssima com qualificadora de 2 a 5 anos de reclusão. Neste caso, também cabe fiança e substituição da pena de detenção por prestação de serviços comunitários e cestas básicas.

A discussão entre o dolo eventual e a culpa continuará existindo e o indiciamento na categoria dolosa continuará cada vez mais difícil. A lei 13.546/2017 até tentou criminalizar qualquer dosagem de álcool no sangue do condutor, mas o parágrafo foi vetado pelo presidente da República e a previsão continuou sendo de homicídio culposo. Independente do tempo de condenação o réu poderá sim, ter a pena trocada por serviços comunitários e pagamento de cestas básicas.