Uma história de coragem e construção

Confira o artigo do secretário Municipal de Cultura e Relações Institucionais (SMC), Sylvio Zimmermann, sobre os 200 anos da presença alemã no Brasil.

Veleiro Argus, que trouxe a primeira leva de imigrantes alemães para o Brasil.

Por Sylvio Zimmermann Neto

Blumenau celebra com entusiasmo os 200 anos da imigração alemã para o Brasil. Há dois séculos, grupos de alemães intrépidos superaram obstáculos inimagináveis em busca de oportunidades e de um novo lar em terras brasileiras. A jornada épica – das terras devastadas pela guerra e pela pauperização, passando pelo Atlântico, até os portos e interiores do país – marcou de maneira permanente a identidade e a cultura nacional.

Foi no dia treze de janeiro do ano de 1824 que o veleiro Argus concluía uma odisseia marítima, aportando na exuberante capital do Império Brasileiro, o Rio de Janeiro. Ao transportar consigo 284 imigrantes de ascendência germânica para o recém independente Império, o Argus, o navio precursor, assinalava o início de uma das migrações mais expressivas da história do país; nas décadas que se seguiram, milhares de colonos e militares de etnia alemã chegariam às terras brasileiras.

A Europa Central vivia um período de transformações. A dissolução do Sacro Império Romano-Germânico em 1806, no contexto das Guerras Napoleônicas, resultou em crises sucessivas e na fragmentação política da já frágil – e descentralizada – esfera política germânica. Neste ano, os territórios situados às margens do Rio Reno consolidaram sua aliança com Napoleão, integrando a Confederação do Reno, uma associação que perdurou até a fracassada campanha militar contra o Império Russo em 1813.

Após as Guerras Napoleônicas, o Congresso de Viena procurou reorganizar a Europa. A Confederação Germânica, com 39 estados soberanos, sucedeu o milenar Sacro Império Romano Germânico; uma tentativa de equilibrar as forças políticas no continente e evitar futuras agressões. Tentativa racional, mas que ao manter o poder dos estados germânicos fragmentado, colheu ressentimentos. No meio da confusão primou o instinto de sobrevivência e, nas décadas que se seguiram, milhões de alemães se lançaram rumo ao desconhecido.

Do lado de cá do Oceano Atlântico, o Brasil, após conquistar sua independência de Portugal, também enfrentava desafios e passava por grandes mudanças. Isso incluía conflitos armados, pressões externas para obter o reconhecimento de sua independência, a consolidação do Estado Nacional e a dependência econômica de uma elite agrária mantida pela mão de obra escrava.

No intuito de povoar as áreas rurais e criar um novo estrato social, o Imperador do Brasil implementou políticas específicas para incentivar a imigração. Visava atrair estrangeiros para que se estabelecessem em terras desocupadas ou subutilizadas. Não queria apenas o desenvolvimento econômico, mas também a diversificação cultural da nação nascente.

A empreitada, sob a coordenação de José Bonifácio, erigia-se com a finalidade de instituir colônias agrícolas, incentivar o minifúndio e instigar a industrialização, elegendo a mão de obra livre europeia como meio de promover o desenvolvimento do Brasil.

O experiente major Schaeffer, então Agente de Negócios Públicos do Império Brasileiro, enviado por Bonifácio à Europa, logrou êxito ao convencer aqueles dispostos a emigrar, especialmente os oriundos do exaurido Estado alemão de Hessen. A proposta concebida por dom Pedro I oferecia propriedades de 77 hectares, animais, sementes e ferramentas aos novos colonos.

A legislação de 1820 garantia a cada imigrante católico um presente de terras, enquanto os encargos e despesas relacionados à viagem ficavam sob responsabilidade individual. Dentre os imigrantes, sobretudo os desprovidos de laços matrimoniais e os mais afetados pelas necessidades financeiras, deveriam se comprometer com a incumbência de servir por quatro anos nas fileiras do Exército imperial antes de receber o solo pátrio.

O primeiro contingente, fora encaminhado à Holanda sob a diligência de Schaeffer, valendo-se da facilidade dos portos neerlandeses para navegar até o Brasil. Em Amsterdã, aqueles destemidos viajantes embarcaram no veleiro Argus, um antigo navio de madeira, lançando-se à epopeia marítima em julho de 1823.

No alvorecer do século XIX, a travessia do vasto Atlântico era uma ainda era uma aventura sem conforto e repleta de perigos iminentes. As embarcações, em sua maioria, mal ultrapassavam a marca dos cem metros de comprimento e trinta metros de largura, proporcionando escasso espaço e absoluta ausência de privacidade aos passageiros.

Desde as primeiras águas fluviais, o grupo foi acometido por uma série de adversidades. Dois colonos sucumbiram à correnteza do rio Reno, e os problemas com a polícia também afligiram a comitiva devido à falta de passaportes válidos – dois homens não possuíam autorização para deixar as terras germânicas.

Após dezoito dias ziguezagueando pelos mares, o Argus viu-se subjugado por uma tempestade, perdeu seu mastro principal e foi obrigado a retornar ao porto. Enquanto o navio passava por reparos, 26 colonos, instigados pela desesperança, desertaram do veleiro. Estes não estariam mais entre o grupo de pioneiros. Quase um mês se passou antes que a embarcação, agora sob a liderança do comandante B. Ehlers, e do capitão Peter Zink, ousasse lançar-se novamente rumo ao Brasil.

A fortuna parecia sorrir pouco aos viajantes alemães. No Canal da Mancha, o Argus, atingido por fortes ventos, ancorou no porto inglês de Cowes, na ilha de Wight. Após duas semanas de expectativa, a embarcação partiu apenas para encontrar-se com um furacão no Golfo da Biscaia, ao largo da costa espanhola, levando o Argus a ser lançado nas águas do litoral africano. Em sua rota em direção a Santa Cruz de Tenerife, nas Ilhas Canárias, o veleiro não escapou de um ataque de piratas.

Após uma jornada de mais de 6 meses, os alemães que embarcaram no Argus finalmente alcançaram o Rio de Janeiro, trazendo consigo mais passageiros do que inicialmente partiram, devido a duas mortes e ao nascimento de 16 novos membros durante a travessia.

Os alemães designados para servir no Exército foram retidos na cidade e alojados nos quartéis. Inicialmente, o governo imperial planejava enviar os demais imigrantes, tanto os do Argus quanto os de outras embarcações, para o sul da Bahia, onde uma colônia fora estabelecida por particulares em 1816, ou para Nova Friburgo, na serra do Rio, onde o governo português havia criado uma colônia com suíços em 1819.

Entretanto, dom Pedro I alterou seu curso de ação, determinando que José Feliciano Fernandes Pinheiro, governador da província do Rio Grande do Sul, liderasse a fundação de uma colônia nas proximidades de Porto Alegre. Para conceder a Fernandes Pinheiro o tempo necessário, os imigrantes do Argus foram direcionados a Nova Friburgo.

Em julho de 1824, uma nova leva de colonos alemães alcançou a capital gaúcha a bordo do transatlântico Anna Louise, o terceiro navio enviado por Schaffer. Eles se tornariam os pioneiros da colônia de São Leopoldo.

Entre os anos de 1824 e 1830, ocorreu o que ficou conhecido como a “primeira onda migratória da colonização alemã no Brasil”. Nesse mesmo período, registra-se a chegada do primeiro navio destinado a Santa Catarina. O trigésimo primeiro desembarque de imigrantes alemães, o quinto navio de 1828, foi realizado pelo navio Johanna Jacoba, uma galera holandesa do tipo “Pink” sob o comando do capitão Pieter Jan Spilliard.

No dia 28 de abril de 1828, o navio “Johanna Jacoba” partiu da Holanda com destino ao Brasil. Após a sua chegada ao porto do Rio de Janeiro em 15 de julho de 1828, os imigrantes aguardaram na região por cerca de 90 dias antes de seguir para suas colônias designadas.

O Johanna Jacoba trouxe consigo 318 colonos destinados a Desterro, Santa Catarina, a maioria originária das regiões do Rio Mosela, de Hunsrück e de Eifel, atualmente parte do Estado da Renânia-Palatinado, na Alemanha. Neste navio, também encontramos alguns imigrantes provenientes de Luxemburgo.

No jornal Diário Fluminense consta a seguinte notícia marítima da chegada do navio holandês “Johanna Jacoba” que levou 77 dias de Rotterdam para o Rio de Janeiro, com 16 membros da tripulação e 318 imigrantes prussianos. Em viagem morreram 7 rapazes e houve 3 nascimentos.

Algumas famílias optaram pela Colônia de Desterro em Santa Catarina, enquanto outras escolheram a Colônia São Pedro de Alcântara, também em Santa Catarina. O transporte dos colonos do Rio de Janeiro para Desterro foi realizado por meio do costeiro bergantim Marquês de Viana e do brigue Luiza.

No bergantim Marquês de Viana, além dos colonos do Johanna Jacoba, também embarcaram vários ex-soldados, libertos devido à dissolução das tropas de estrangeiros alemães. O brigue Luiza transportou 276 pessoas, enquanto o bergantim Marquês de Viana levou 359 pessoas.

Em novembro de 1828, os primeiros imigrantes alemães chegaram a Santa Catarina. Devido a questões de saúde, indefinições e falta de ação governamental, pouco havia sido feito para receber um número significativo de imigrantes. Eles tiveram que aguardar por um longo período até serem finalmente instalados em fevereiro de 1829, quando alcançaram o destino final em São Pedro de Alcântara, a primeira colônia alemã em Santa Catarina.

E esse foi o ponto de partida de um dos grandes movimentos migratórios em direção ao nosso país. No seu encalço, chegaram ao Brasil um grande número de agricultores, artesãos, comerciantes e profissionais qualificados, que desempenharam um importante papel no desenvolvimento de diversas atividades econômicas no país. Estabeleceram-se em colônias agrícolas, formando comunidades prósperas ao lado de outros migrantes, e ao mesmo tempo preservando sua cultura, tradições e idioma. Trouxeram consigo um ideário fundamentado na concepção de um Brasil livre do sistema escravagista, onde a cidadania floresceria por meio do trabalho e da ética.

Suas ideias se tornaram fatos e seu legado é vasto. Construíram pouco a pouco, leva após leva, o próspero estado de Santa Catarina; Da agricultura à fundação de escolas, à promoção de valores educacionais, das habilidades em construção, metalurgia e engenharia, à criação de associações esportivas, comerciais e industriais. Não foi apenas um capítulo na história. O impacto daqueles pioneiros ressoa não apenas nas realizações tangíveis, mas na aspiração à prosperidade e à justiça que ainda vive em seus descendentes.

* O autor é vereador licenciado e atual Secretário Municipal de Cultura e Relações Institucionais (SMC) de Blumenau.