Rübezahl: o guardião mítico das montanhas da Silésia

Os primeiros registros datam do século XV, período em que a Silésia, então parte do Sacro Império Romano-Germânico, era habitada por mineradores, pastores e camponeses. Confira a coluna Hallo Heimat, de Clay Schulze.

Capa do livro Karl August Musäus Fairy, Tales de Rübezahl. | Foto Wilhelm Stumpf

A Silésia, uma região de muita história e riqueza cultural, estende-se entre os rios Oder e Vístula, com paisagens que variam de planícies férteis a montanhas imponentes. Localizada no coração da Europa Central, a Silésia faz fronteira com a Boêmia ao sul e é uma área historicamente disputada, devido à sua posição estratégica e imensa riqueza mineral.

Embora hoje esteja majoritariamente sob administração polonesa, a Silésia tem laços profundos com a Alemanha, especialmente a partir do século XII, quando foi colonizada por populações germânicas, marcando o início de uma relação que moldou sua arquitetura, cultura e desenvolvimento econômico. A região pertencia à Alemanha até 1945, quando foi dividida entre a Tchéquia e a Polônia, marcando a fronteira entre os dois países.

Essa interação germano-eslava é refletida não apenas na história política, mas também na herança cultural da região. As Riesengebirge, (ou Montanhas Gigantes), em especial, ocupam um lugar de destaque na imaginação coletiva, sendo palco de lendas que atravessaram séculos. Entre elas, a figura de Rübezahl, o espírito protetor das montanhas, tornou-se um símbolo da união entre a natureza exuberante e a tradição oral local. Suas histórias, cheias de mistério e ensinamentos, ecoam o passado multicultural da Silésia e destacam a importância de suas paisagens na formação de mitos e identidades regionais.

AS ORIGENS DA LENDA DO GUARDIÃO DAS MONTANHAS GIGANTES

A figura de Rübezahl surge nas brumas da história como um reflexo das crenças e medos dos povos da região. Os primeiros registros sobre Rübezahl datam do século XV, período em que a Silésia, então parte do Sacro Império Romano-Germânico, era habitada por mineradores, pastores e camponeses. Mineiros do Harz teriam trazido a lenda para a Silésia; os mineiros de Schwaz, no Tirol, que foram chamados para as Montanhas Gigantes a partir de 1530, também contribuíram para a formação da lenda.

Esses povos transmitiam oralmente histórias sobre um guardião misterioso que habitava as montanhas, controlava os elementos e exercia uma influência direta sobre a vida dos moradores da região.

As primeiras descrições do espírito das montanhas não eram as de um ser bondoso ou amistoso. Relatos dos mineradores italianos que migraram para a Silésia durante o século XV mencionavam um guardião subterrâneo, um espírito protetor que zelava pelas riquezas escondidas no subsolo e que punia severamente aqueles que tentassem explorá-las de forma gananciosa. Esses primeiros relatos apresentavam Rübezahl como um ser demoníaco, associado à força destrutiva da natureza e à imprevisibilidade do clima nas montanhas.

No século XVI, o mapa da Silésia criado por Martin Helwig trouxe a primeira representação gráfica de um espírito das montanhas. Na ilustração, o ser era descrito como uma figura híbrida, metade homem e metade animal, com traços grotescos como patas de cabra e chifres de cervo. Essa imagem simbolizava tanto o poder indomável das montanhas quanto o medo reverente que os habitantes locais sentiam diante das forças naturais. Helwig capturou, em sua obra, a essência do que se tornaria Rübezahl: um ser que não era inteiramente maligno, mas que representava a dualidade do mundo natural – cruel e generoso, aterrorizante e fascinante.

A primeira representação conhecida de Rübezahl no mapa da Silésia, de Martin Helwig (1776)

Com o passar do tempo, as histórias sobre Rübezahl começaram a ser registradas por escrito. Em 1561, o teólogo e escritor Caspar Hennenberger publicou um texto que mencionava o espírito das montanhas em uma coletânea de relatos sobre lendas locais.

No entanto, foi apenas no século XVII que o nome Rübezahl ganhou notoriedade, especialmente com a publicação do polímata Johannes Praetorius, que escreveu uma coletânea de contos sobre demônios e espíritos, em suas obras Daemonologia Rubinzalii Silesii (3 volumes, 1662–1665) e Satyrus Etymologicus- Oder der Reformirende und Informirende Rüben-Zahl (1672). No total, Praetorius catalogou 241 histórias sobre o espírito da montanha.

Praetorius descreveu Rübezahl como um espírito errático, capaz de alternar entre atos de bondade e vingança, muitas vezes punindo os arrogantes e ajudando os humildes, característica que marcaria sua evolução como personagem mítico. Seus trabalhos tornaram Rübezahl uma figura conhecida muito além das fronteiras da Silésia.

Após Praetorius, foi uma coleção de cinco lendas de Rübezahl, publicada pelo escritor alemão Johann Karl August Musäus em 1783 em suas ‘Volksmährchen der Deutschen’ (Contos Populares dos Alemães), que realmente promoveu a popularidade e a notoriedade de Rübezahl. Aqui, o espírito da montanha, intitulado Senhor dos Gnomos, é retratado de forma muito menos demoníaca e rude do que por Praetorius.

Musäus o caracterizou da seguinte forma:

“Denn Freund Rübezahl sollt ihr wissen, ist geartet wie ein Kraftgenie, launisch, ungestüm, sonderbar; bengelhaft, roh, unbescheiden; stolz, eitel, wankelmüthig, heute der wärmste Freund, morgen fremd und kalt; zu zeiten guthmüthig, edel, und empfindsam; aber mit sich selbst in stetem Widerspruch; albern und weise, oft weich und hart in zween Augenblicken, wie ein Ey, das in siedend Wasser fällt; schalkhaft und bieder, störrisch und beugsam; nach der Stimmung, wie ihn Humor und innrer Drang beym ersten Anblick jedes Ding ergreifen läßt.”

“Pois amigo Rübezahl, saibam, tem a natureza de um gênio poderoso, caprichoso, impetuoso, peculiar; moleque, bruto, desavergonhado; orgulhoso, vaidoso, inconstante, hoje o amigo mais caloroso, amanhã estranho e frio; às vezes bondoso, nobre e sensível; mas em constante contradição consigo mesmo; tolo e sábio, frequentemente mole e duro em dois momentos, como um ovo que cai em água fervente; travesso e sincero, teimoso e flexível; conforme o humor e a pressão interna o agarram à primeira vista de cada coisa.”

Os primórdios da lenda de Rübezahl refletem as crenças animistas dos povos e a conexão íntima com as forças da natureza. Para eles, o espírito das montanhas não era apenas uma figura folclórica, mas uma explicação para fenômenos inexplicáveis como mudanças bruscas no clima, inundações repentinas e até mesmo a fertilidade das terras. Assim, a figura de Rübezahl emergiu como um símbolo da luta pela sobrevivência em um ambiente hostil, uma personificação das montanhas Riesengebirge e de sua força indomável, capaz de moldar tanto o destino dos homens quanto o curso da história.

Coleção histórica de cartões postais de contos de fadas de Jack Zipe – Elssner, Felix (alemão, 1866-1945) | Foto MCAD Library.

A ORIGEM DO NOME RÜBEZAHL

A origem do nome Rübezahl permanece envolta em mistério, refletindo a complexidade do personagem lendário. Em 1561, o cartógrafo Martin Helwig registrou o nome como Rübenczal em seu famoso mapa da Silésia, e, no século XVII, o autor Johannes Praetorius documentou diferentes variações, como Rübezal, Ribezal e Riebenzahl. Essas diversas grafias mostram como o mito do espírito das montanhas foi sendo reinterpretado ao longo do tempo. Praetorius também descreveu Rübezahl em várias formas simbólicas, como gigante, guardião de tesouros, monge que confunde viajantes, corvo, burro e, em algumas versões, como uma figura demoníaca.

Uma das explicações mais conhecidas para o nome Rübezahl foi dada por Musäus. Na narrativa, Rübezahl rapta a princesa Emma e tenta conquistá-la oferecendo nabos mágicos, que ela pode transformar em qualquer forma desejada para aliviar sua saudade. No entanto, os nabos logo murcham. Cansada de sua prisão, a princesa propõe a Rübezahl um desafio: contar todos os nabos em um campo. Enquanto ele realiza a tarefa, recontando obsessivamente para garantir a precisão, Emma foge montada em um nabo transformado em cavalo. Após encontrar refúgio com o príncipe Ratibor, ela zomba do espírito chamando-o de “Rübezahl” (contador de nabos), um nome que ele passou a detestar, mas que permaneceu associado a ele como um apelido zombeteiro.

Além dessa explicação lendária, outra teoria sugere que o nome Rübezahl pode ter raízes no alto-alemão médio. O termo Riebe (relacionado a nabos) e zagel (cauda) poderiam estar conectados ao aspecto demoníaco e figurativo do espírito, frequentemente retratado com uma cauda. Essa interpretação reforça o caráter multifacetado de Rübezahl, que incorpora elementos de benevolência e malevolência, refletindo a ambiguidade moral característica das lendas antigas.

Em outras culturas, o nome de Rübezahl também se adaptou às línguas e tradições locais. Em checo, ele é conhecido como Krakonoš, possivelmente derivado de krk ou krak (pinheiro de montanha) e nosit (carregar). Outra hipótese sugere que o nome esteja relacionado à antiga tribo germânica dos Corconti ou Korkontoi, mencionada por Ptolomeu como habitantes das montanhas que hoje formam a cordilheira Riesengebirge. Em polonês, desde 1898, ele é chamado de Liczyrzepa (literalmente, “contador de nabos”), mas também é conhecido como Duch Gór (“Espírito da Montanha”) ou Rzepiór.

No entanto, chamar Rübezahl por seu nome diretamente é considerado uma provocação perigosa dentro de seu reino, as Montanhas Gigantes. Diz-se que isso evoca sua ira. Para demonstrar respeito, os habitantes locais referem-se a ele como “Senhor das Montanhas”. Essa deferência reforça a visão de Rübezahl como um ser poderoso, cuja presença é sentida em toda a região.

A multiplicidade de interpretações sobre o nome e as histórias de Rübezahl demonstra o papel central desse espírito na construção das tradições e identidades culturais das regiões da antiga Silésia, perpetuando sua lenda como um símbolo do poder e do mistério das montanhas Riesengebirge.

Animação GIF criada para Liczyrzepy, da Biblioteca cifrada POLONA. | Imagem: Kajetan Obarski

A INTRODUÇÃO DO GUARDIAO DAS MONTANHAS NAS ARTES

No século XIX, Rübezahl tornou-se uma figura central para a identidade cultural dos silezianos, sendo amplamente explorado em diferentes gêneros literários. Durante o romantismo tardio, suas lendas foram revividas como parte de um esforço para resgatar a literatura popular da Idade Média e do início da era moderna. Escritores como Oskar Ludwig Bernhard Wolff e Franz Hoffmann, buscaram tornar o personagem conhecido entre as classes populares e a juventude. A figura de Rübezahl também foi incorporada em livros escolares de geografia local e adaptada em obras teatrais.

A expulsão dos alemães da Silésia após o fim da Segunda Guerra Mundial não afetou muito a popularidade do espírito da montanha. Existem muitas publicações recentes, especialmente voltadas para crianças e jovens. Novas adaptações e reedições, como a obra de Johann Karl August Musäus, continuam a ser publicadas, reforçando a relevância atemporal de Rübezahl na literatura e no imaginário cultural.

Suas histórias influenciaram não apenas a literatura, mas também a indústria cinematográfica, tornando sua figura uma parte essencial da cultura dos Montes dos Gigantes até os dias de hoje. Nos anos 1970, uma série de TV tcheca o representou como uma figura amigável e paterna, enquanto discos e fitas cassete trouxeram suas lendas para os quartos das crianças alemãs.

Na clássica canção popular “Riesengebirgslied”, composta por Othmar Fiebiger e Vinzenz Hampel entre 1914/15, que se tornou um hino regional, Rübezahl é mencionado no refrão. Uma outra canção folclórica, “Hohe Tannen weisen die Sterne”, publicada pela primeira vez em 1923 pela Associação de Escoteiros Alemães, faz sucesso até hoje.

Em tempos mais recentes, o tema foi novamente abordado musicalmente: em 1982, o grupo pop Dschinghis Khan incluiu a canção Rübezahl no álbum Helden, Schurken & der Dudelmoser, baseada na primeira história de Musäus.

UMA JOVEM CARREIRA NA POLÔNIA

O Rübezahl polonês é relativamente jovem, tendo sido descoberto apenas após 1945. A Baixa Silésia, no lado norte dos Montes dos Gigantes, tinha uma população majoritariamente alemã até 1945. Após a fuga e expulsão dos alemães, começou a colonização polonesa, o que levou à busca por uma identidade polonesa-silesiana independente. Na escolha de uma figura lendária adequada para esse propósito, encontraram Rübezahl. Liczyrzepa, a tradução literal do nome alemão Rübezahl, foi popularizada pelo autor polonês Józef Sykulski em seu texto de 1945, Liczyrzepa, zły duch Karkonoszy i Jeleniej Góry (“Rübezahl – o espírito maligno dos Montes dos Gigantes e de Hirschberg”).

Como a lenda tinha raízes alemãs, desencadeou-se uma disputa política. No entanto, o espírito das montanhas resistiu firmemente na Polônia e até ganhou nova força. Desde a queda da Cortina de Ferro, uma nova identidade silesiana emergiu gradualmente na região ao norte dos Montes dos Gigantes. Com ela, Liczyrzepa foi redescoberto. Atualmente, Rübezahl é usado pelo turismo polonês e tcheco como símbolo promocional das Montanhas Gigantes.

Animação GIF criada para Liczyrzepy, da Biblioteca cifrada POLONA. | Imagem: Kajetan Obarski

O RENASCIMENTO DE RÜBEZAHL

Houve tempos em que Rübezahl, o misterioso espírito das montanhas, fazia parte do repertório obrigatório das lendas e contos de fadas amados por crianças e adultos. Por um período, o herói da Silésia e da Boêmia estava desaparecido, ofuscado pela concorrência de Harry Potter e outros. No entanto, há algum tempo, o mito dos Montes dos Gigantes tem ganhado nova vida.

Em festivais regionais em toda região, Rübezahl é celebrado como parte integrante da herança cultural. Esses eventos, que incluem encenações teatrais, música e dança, ajudam a manter viva a tradição e a transmitir as histórias às novas gerações.

Hoje, Rübezahl transcende suas origens como mito regional e é parte integrante do imaginário coletivo, especialmente entre as crianças. Ele figura em contos infantis, onde suas aventuras encantam leitores e ouvintes com uma mistura de magia, sabedoria e humor. Essa transição, de lenda mineira a herói folclórico, reflete como as histórias moldam a identidade cultural de um povo, mantendo viva a memória de suas origens e celebrando a riqueza das tradições que ainda inspiram gerações.

Clay Schulze (@clay.schulze) é Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino Liederkranz do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau

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