Por Sérgio Luiz Campregher
Havia na República Democrática Alemã (RDA)¹ um crescente sentimento de orgulho das realizações do Estado, particularmente da performance extraordinária de seus atletas, o que resultou em uma identidade nacional definida – embora deixando de contemplar o fato de que eles haviam sido habilmente drogados.
Na República Federal² , a esquerda argumentava que o Estado-Nação era uma coisa do passado, ao passo que na direita a acusação de que os tratados orientais eram uma traição do ideal nacional estava sempre presente. Em certo sentido as coisas estavam de volta ao normal, depois da aberração dos anos de Adenauer. A direita, uma vez mais era nacionalista e a esquerda, anti-nacional; mas tanto a esquerda quanto a direita tinham sérios problemas com a questão da identidade nacional alemã. A maioria estava imunizada contra as formas mais virulentas do nacionalismo, depois da totalitária experiência do nacional-socialismo e o conceito de “patriotismo constitucional”, popularizado pelo jornalista Dolf Sternberger, encontrou grande aceitação.
Isso tendia a negligência o fato de que os fundadores da República Federal defendiam a nacionalidade com base na origem do sangue (Jus Sangüinis) e não no lugar do nascimento (Jus Soli). O alemão era uma pessoa nascida de pais alemães, não alguém nascido na Alemanha. Uma pessoa nascida em Alma-Ata que conseguisse provar ser de descendência alemã tinha o direito automático a cidadania; uma pessoa nascida de pais turcos na República Federal não tinha esse direito. Os ardorosos debates a respeito de uma mudança nas leis de cidadania em 1999 demonstravam que essa questão continuava a ser extremamente sensível, mesmo depois da reunificação³.
Nesse ínterim, muita tinta foi derramada sobre a diferença entre Nações e Estados-Nações; discutiu-se muito para definir se a Alemanha era “binacional” ou “pós-nacional” e se uma “nação-cultural” poderia conter dois estados alemães. Estes debates superficiais e abstratos inevitavelmente traziam à tona a questão da era nazista, Foi somente na década de 1980 que teve início um sério debate quando a República Federal finalmente encarou o sórdido passado da Alemanha.
Foi nessa ocasião que a palavra “Holocausto” ingressou no vocabulário do dia-a-dia quando uma série de televisão americana do mesmo nome atraiu uma enorme audiência em 1979.
Em 1985, Helmuth Kohl demonstrou típica falta de sensibilidade quando convidou Ronald Reagan para visitar um cemitério militar da Segunda Guerra Mundial em Bitberg, onde 2 mil soldados alemães estavam enterrados. O que foi concebido como um ato de reconciliação não deu certo, porque quarenta mortos tinham sido membros da Waffen-SS.
O dano foi parcialmente reparado por um discurso extraordinário proferido três dias depois por Richard Von Weizsäcker, que fora eleito presidente, no ano anterior.
No discurso Von Weizsäcker afirmou que: “a responsabilidade histórica é da Alemanha e dos alemães para os crimes do nazismo. Há uma ligação inseparável entre a ocupação nazista da Alemanha e as tragédias causadas pela Segunda Guerra Mundial.
Ao contrário da forma como o fim da guerra, ainda era vista pela maioria das pessoas na Alemanha na época, o presidente alemão enfatizou que o dia 08 de maio de 1945 seria encarado como um “dia da libertação”o fim de um caminho errado na história da Alemanha. E que os horrores sofridos pelos alemães nos últimos dias da guerra eram resultado direto de 30 de janeiro de 1933. Von Weizsäcker enfatizou ainda que o genocídio de 6 milhões de judeus europeus era um evento histórico único e insistiu em afirmar que cada alemão pôde testemunhar o que os seus concidadãos judeus tiveram que sofrer.
O discurso de Von Weizsäcker foi, de modo geral, recebido muito favoravelmente, embora houvesse alguns protestos da parte dos que afirmavam insistentemente que os alemães comuns ignoravam completamente o que acontecera aos judeus ou que aventavam que o passado estava sendo desenterrado apenas para promover os interesses nacionais do Estado de Israel.
Foi um artigo de Ernst Nolte, escrito na linguagem intrincada de um discípulo do filósofo nacional-socialista Martin Heidegger, publicado no jornal Frankfurt Algemeine Zeitung em junho de 1986, que finalmente desencadeou um ardoroso debate entre os historiadores a respeito do passado nazista.
Nolte aventou que havia um vínculo causal entre o Gulag e Auschwitz, que os nazistas eram essencialmente anti-bolchevistas. Ele se queixou de que os assassinatos stalinistas eram sistematicamente desconsiderados, enquanto os crimes nazistas eram discutidos em um grau exaustivo. Hitler, o burguês anti-Lênin, meramente agia em auto-defesa contra uma ameaça “asiática”. Por conseguinte, o fardo da culpa deveria ser retirado dos ombros coletivos da Alemanha. O genocidio dos judeus europeus desempenhou um pequeno papel nessa análise. Em grande medida designado como a eliminação dos “judeus bolcheviques”, esse genocício se distinguiu do assassinato em massa soviético por causa do “ procedimento técnico do gás venenoso” afirmava Nolte.
Praticamente ao mesmo tempo, o historiador ultranacionalista Andreas Hillgrüber exaltou as glórias da Wehrmacht, cuja luta heróica nos últimos estágios da guerra possibilitou que milhões de alemães escapassem do terror, de estupros e assassinatos bolchevistas. Com isso, ele preservou o mito da distinção entre o bravo e o digno exército e a brutal SS. E prudentemente deixou de fora as políticas assassinas das Wehrmacht no oriente e os discursos finais de Goebels e Hitler na chancelaria .
O trabalho revisionista de Nolte e de Hillgrüber foi reforçado por Michael Stürmer, o historiador que se tornou redator de discursos do chanceler Helmuth Kohl , que preconizou uma versão mais positiva do passado da Alemanha, que conferia a Repúlica Federal um sentimento orgulhoso de identidade.
Jürgen Habermas, o filósofo mais influente da Alemanha liderou o contra-ataque a Nolte aos seus colegas ultranacionalistas na profissão histórica, em um artigo vigoroso na publicação semanal liberal Die Zeit.
Ele acusou Nolte de remover todas as questões morais do passado histórico da Alemanha, de reduzir Auschwitz “a uma mera inovação técnica” e de debilitar a abertura para o Ocidente baseada em “ principios constitucionais universais” dos quais a Alemanha do pós-guerra podia justificadamente se orgulhar.
Não resultaram novas idéias dos Historikerstreit, em que a maioria da guilda histórica se alinhou contra Nolte e os seus partidários ultranacionalistas, e a tentativa de reescrever a história da Alemanha fora totalmente interrompida.
A abordagem adota por Michael Foucault e Zygmund Bauman, que enfatizava que o Holocausto resultara da patologia de forças modernas e não de forças concretas na história da Alemanha, foi vigorosamente contra-atacada por historiadores que se recusaram a aceitar uma visão tão pessimista do mundo moderno. No entanto persistia o fato de que a insistência na natureza exclusiva dos crimes nazistas deixava o campo de Habermas, a época, aberto à acusação de que eles não consideravam os crimes cometidos em nome do comunismo e a teoria desgastada do totalitarismo foi retirada da prateleira na qual foi colocada desde o auge da Guerra Fria.
O reconhecimento da responsabilidade dos terríveis crimes da era nazista lembra que a imensa maioria dos alemães fechou os olhos ou não fez nada diante da deportação de judeus ou de opositores políticos aos campos de concentração.Os crimes alemães eram incomparáveis, e a expiação alemã era igualmente única.
Resta ser visto como a nova Alemanha, contenderá com os mitos, heróis e vilões de seu passado e se ela será capaz de encontrar um sentimento positivo de identidade nacional. Ainda há muito a ser feito. A força das circunstâncias era tamanha que a Alemanha foi incapaz de empreender a missão – que muitos esperavam em 1990 – de conduzir a Europa em direção a uma utopia pós-nacional.
Isto não aconteceu e o país foi deixado com a intimidante tarefa de enfrentar as mesmas responsabilidades e obrigações dos seus aliados. Nenhuma das antigas desculpas seria aceita, e os consolos por uma má consciência por causa do passado criminoso não mais ofereciam proteção contra a necessidade de enfrentar os ônus e as aflições da normalidade.
O autor é Historiador.
Fontes Bibliográficas:- KITCHEN, Martin. História da Alemanha Moderna de 1800 aos dias de hoje. Editora Cultrix, Sâo Paulo, 2013.
- EVANS, J Richard. O terceiro Reich no poder. Editora Planeta, Sâo Paulo, 2011.