Coronavírus infecta e se replica em células das glândulas salivares

A descoberta foi feita por pesquisadores da USP por meio de análise de amostras de glândulas salivares de pacientes que morreram por Covid-19.

Foto: Marcelo Martins

Um estudo realizado por pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) mostrou que o Sars-CoV-2, vírus responsável pela covid-19, infecta e se replica em células das glândulas salivares, responsáveis pela produção e liberação de saliva. A pesquisa ajuda a explicar o motivo pelo qual o coronavírus se faz presente em grandes quantidades na saliva de pacientes infectados, possibilitando, inclusive, a realização de testes a partir desse material.

Nos últimos meses, várias pesquisas têm revelado a presença e recorrência do coronavírus na boca de pessoas infectadas e também a prevalência de complicações da Covid-19 em pacientes com problemas bucais. Um estudo publicado no Journal of Clinical Periodontology, a revista da Federação Europeia de Periodontologia (FEP), analisou 500 pacientes que foram infectados pelo coronavírus e concluiu que aqueles com problemas gengivais tinham 3,5 vezes mais possibilidade de serem internados por complicações da covid-19 e a probabilidade 4,5 vezes maior de precisarem de um ventilador mecânico. Outra pesquisa, realizada por profissionais da Residência em Periodontia no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), revelou ainda que o biofilme – placas de bactérias que se acumulam sobre os dentes – pode ser um reservatório de SARS-CoV-2.

Além disso, a importância do cuidado com a saúde bucal já era demonstrada na prevenção de outras doenças. “Por ser uma abertura ampla do corpo, e que tem muito contato com objetos externos, como a comida, as mãos, talheres e copos, a cavidade bucal se torna um caminho fácil para a entrada de vírus. E, mais do que isso, por ser um espaço de absorção de nutrientes e canal direto para o interior do corpo, ela também é um local sensível, vulnerável para o acometimento de doenças”, explica o dentista e especialista em Saúde Coletiva na Neodent, João Piscinini.

A pesquisa sugere que tecidos especializados na produção e secreção da saliva servem de reservatórios para o SARS-CoV-2 | Foto: Agência FAPESP

Boca como porta de entrada

Muito antes da chegada da covid-19, outras patologias já tinham acesso ao corpo humano pela boca. Vírus como o da herpes, catapora, caxumba e mononucleose são exemplos de transmissores que usam a saliva como forma de contágio. “Já está claro para a sociedade que até mesmo a gripe comum pode ser transmitida pela cavidade bucal. Porém, o que esperamos com as descobertas feitas com relação à covid-19 é poder evidenciar, ainda mais, o quanto é importante olharmos para a boca, e também para a saúde bucal, como parte do cuidado do corpo como um todo”, ressalta Piscinini.

Além das doenças virais, diversas outras complicações podem indicar alertas pela boca. A sífilis, leucemia, anemia, diabetes, cirrose e até diabetes são exemplos de enfermidades que podem dar sinais por meio da boca. De acordo com Piscinini, além de porta de entrada, a boca também é um espelho do corpo. “Em uma análise da cavidade bucal, profissionais da odontologia conseguem identificar anormalidades que podem revelar a presença de muitos outros problemas de saúde, isso a partir de sintomas como mudança de coloração na mucosa, textura da língua, sangramento nas gengivas, enfraquecimento dos dentes, entre outros”, conta.

Por isso, além da necessidade de manter a saúde bucal em dia, o acompanhamento com profissionais da odontologia também pode garantir a descoberta precoce de doenças mais graves. “Estudos como esse da USP, que investigam o papel da boca como transmissora e local de proliferação de vírus e bactérias, nos ajudam a conscientizar ainda mais sobre a importância de a população manter as consultas frequentes ao dentista”, reforça Piscinini
A próxima etapa da pesquisa dos profissionais da USP pretende identificar se os tecidos presentes na boca, como mucosas e gengivas, podem também facilitar a entrada do vírus para o corpo. “A boca é uma cavidade muito maior que a nasal e, caso os tecidos internos sejam uma abertura direta do vírus para o organismo, as medidas de cuidados devem ser ainda mais relevantes”, ressalta o especialista em Saúde Coletiva na Neodent.

No estudo da Universidade de São Paulo, as células das glândulas salivares foram descobertas como local de replicação do vírus da covid-19. Realizada por meio da análise de amostras de três tipos de glândulas salivares de pacientes que morreram em decorrência de complicações causadas pelo coronavírus, a pesquisa teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e os resultados foram publicados no Journal of Pathology.

Pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) constataram que o sars-cov-2 infecta e se replica em células das glândulas salivares. Por meio de análises de amostras de três tipos de glândulas salivares, obtidas durante um procedimento de autópsia minimamente invasiva em pacientes que morreram em decorrência de complicações da covid-19 no Hospital das Clínicas da FMUSP, eles verificaram que esses tecidos especializados na produção e secreção de saliva são reservatórios para o novo coronavírus.

Os resultados do estudo, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), foram publicados no Journal of Pathology.

As descobertas contribuem para explicar por que o novo coronavírus é encontrado em grandes quantidades na saliva, o que viabilizou a realização de testes para diagnósticos da covid-19 a partir do fluido, relatam os autores do trabalho.

“É o primeiro relato de vírus respiratório capaz de infectar e se replicar nas glândulas salivares. Até então, acreditava-se que apenas vírus causadores de doenças com prevalência muito alta, como o da herpes, usavam as glândulas salivares como reservatório. Isso pode ajudar a explicar por que o sars-cov-2 é tão infeccioso”, disse à Agência Fapesp Bruno Fernandes Matuck, doutorando na Faculdade de Odontologia (FO) da USP e primeiro autor do estudo.

Teste da saliva permite detectar diferenças na carga viral de coronavírus​

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Os pesquisadores já tinham demonstrado, em estudo anterior, a presença de RNA do sars-cov-2 no tecido periodontal de pacientes que morreram em decorrência da Covid-19. Em razão da alta infecciosidade do sars-cov-2 quando comparado a outros vírus respiratórios, eles levantaram a hipótese de que o novo coronavírus poderia infectar e se replicar em células das glândulas salivares e, dessa forma, surgir na saliva sem ter contato com secreções nasais e pulmonares.

Isso porque estudos internacionais anteriores mostraram que o ducto salivar apresenta o receptor ACE-2, com o qual a proteína spike do sars-cov-2 se liga para infectar as células. Mais recentemente, outros grupos de cientistas relataram ter observado em estudos feitos com animais que, além da ACE2, receptores como a serina protease transmembranar 2 (TMPRSS) e a furina, presentes nos tecidos das glândulas salivares, são alvos do sars-cov-2.

A fim de testar essa hipótese em humanos, foram feitas biópsias guiadas por ultrassom em 24 pacientes que morreram em decorrência da Covid-19, com idade média de 53 anos, para extração de amostras de tecidos das glândulas parótida, submandibular e menores.

As amostras dos tecidos foram submetidas a análises moleculares (RT-PCR) para identificação da presença do vírus. Os resultados indicaram a presença do vírus nos tecidos em mais de dois terços das amostras.

Já por meio de marcações imuno-histoquímicas – em que é colocado um corante em uma molécula que se gruda no vírus e nos receptores –, foi possível observar a presença do vírus in situ, no interior dos tecidos. E, por meio de microscopia eletrônica, foi detectada não só a presença, mas também o vírus se replicando nas células e identificado o tipo de organela que ele utiliza para essa finalidade.

“Observamos vários vírus aglomerados nas células das glândulas salivares – um indicativo de que estão se replicando em seu interior. Não estavam presentes nessas células passivamente”, afirma Matuck.

Boca como porta de entrada direta

Os pesquisadores pretendem avaliar, agora, se a boca pode ser uma porta de entrada direta do sars-cov-2, uma vez que os receptores ACE2 e o TMPRSS são encontrados em vários locais da cavidade, como em tecidos da gengiva e da mucosa bucal. Além disso, a boca tem uma área de contato maior do que a cavidade nasal, apontada como a principal porta de entrada do vírus.

“Por meio de uma parceria com pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte, dos Estados Unidos, pretendemos mapear a distribuição desses receptores na boca e quantificar as replicações virais em tecidos bucais”, diz Luiz Fernando Ferraz da Silva, professor da FMUSP e coordenador do projeto.

“Pode ser que a boca seja um meio viável para entrada direta do vírus”, estima Matuck.

Outra ideia é verificar se idosos possuem mais receptores ACE2 na boca em comparação com pessoas mais jovens, uma vez que têm uma diminuição do fluxo salivar. A despeito disso, os pesquisadores encontraram mesmo em pacientes idosos, que têm menos tecidos salivares, uma alta carga viral.

“Esses pacientes quase não tinham tecido salivar, era quase tudo tecido gorduroso. Mas, mesmo assim, ainda apresentavam uma carga viral relativamente alta”, relata Matuck.

O artigo Salivary glands are a target for Sars-CoV-2: a source for saliva contamination tem autoria de Bruno Fernandes Matuck, Marisa Dolhnikoff, Amaro Nunes Duarte-Neto, Gilvan Maia, Sara Costa Gomes, Daniel Isaac Sendyk, Amanda Zarpellon, Nathalia Paiva de Andrade, Renata Aparecida Monteiro, João Renato Rebello Pinho, Michele Soares Gomes-Gouvêa, Suzana COM Souza, Cristina Kanamura, Thais Mauad, Paulo Hilário Nascimento Saldiva, Paulo H Braz-Silva, Elia Garcia Caldini e Luiz Fernando Ferraz da Silva.

Fonte: Agência FAPESP