Wandervogel: a jornada da juventude alemã em busca da liberdade e conexão com a natureza

Na coluna Hallo Heimat, Clay Schulze resgata um movimento que surgiu do desejo por simplicidade e conexão com a natureza, em uma época marcada pela rápida urbanização, mecanização e industrialização.

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No final do século XIX, a Alemanha viu surgir uma geração que ansiava por uma conexão mais profunda com a natureza. Esse desejo estava enraizado em uma tradição antiga e particular da cultura germânica: o wandern (caminhada).

Desde tempos imemoriais, o ato de caminhar e explorar o ambiente natural tem sido uma prática valorizada pelos alemães, visto não apenas como uma atividade física, mas também como uma experiência de introspecção e espiritualidade. O costume representa a busca por liberdade em um espaço aberto e ilimitado, onde a alma se expande ao ritmo da caminhada, e o indivíduo encontra sua própria essência no silêncio e na grandiosidade das paisagens.

O movimento Wandervogel nasceu desse anseio pela simplicidade e pela natureza, em uma sociedade que enfrentava a rápida urbanização, mecanização e a industrialização. Na Alemanha do final do século XIX experimentava profundas transformações, cidades em crescimento rápido traziam o progresso, mas também o distanciamento da natureza. Com isso, surgiu uma necessidade genuína de resgatar os valores e a tranquilidade que as montanhas, florestas e campos ofereciam. E foi nesse contexto que o Wandervogel floresceu, reunindo jovens que, inspirados por esse chamado, decidiram reconectar-se com o mundo natural e redescobrir a verdadeira liberdade.

OS PRIMEIROS PASSOS DO MOVIMENTO DE CAMINHADAS

Antes da fundação oficial do Wandervogel como associação, houve uma fase inicial marcada por Hermann Hoffmann (1875–1955). Suas atividades de caminhada foram despertadas por uma experiência escolar como aluno de quinze anos em 1890 em Magdeburgo (capital do estado de Saxônia-Anhalt). Numa aula abafada de verão, enquanto lia “Hoch auf das Wandern”, sua classe foi sacudida pelo seu professor de alemão, que os incentivou a economizar para realizarem caminhadas nas férias. Hoffmann registrou esse momento em um manuscrito, “Dos Primórdios do Wandervogel”.

Após terminar a escola em 1894, Hoffmann matriculou-se em Berlim em Filologia (línguas orientais) e Direito, e começou a dar aulas semestrais de taquigrafia no Ginásio de Steglitz.

Foi em 1896, que o jovem professor Hermann Hoffmann lançou a primeira faísca do que viria a se tornar o movimento Wandervogel. Ao observar a inquietação dos jovens e sua busca por propósito e autenticidade, Hoffmann começou a incentivar excursões e passeios a pé como forma de promover essa conexão com a natureza. Em vez de priorizar as rotinas das escolas ou o cotidiano da vida urbana, ele vislumbrou uma educação alternativa, onde a verdadeira aprendizagem pudesse acontecer ao ar livre, entre os vales, as montanhas e as florestas. Para ele, cada caminhada era uma lição de vida, onde se aprendia o valor da simplicidade, do silêncio e da contemplação.

As primeiras caminhadas organizadas por Hoffmann atraíram alunos e outros jovens de Berlim que desejavam escapar da atmosfera urbana. Ele os incentivava a carregar mochilas leves e a se despirem das preocupações do dia a dia, deixando-se conduzir pelos caminhos sinuosos e pelos sons da natureza, muitas vezes embalados por músicas folclóricas.

Naquela época, essa iniciativa ainda era vista como uma atividade alternativa, mas foi a inspiração para muitos que, mais tarde, se juntariam ao movimento Wandervogel. Com Hoffmann, esses jovens começaram a ver a natureza não apenas como um cenário, mas como um elemento essencial para o crescimento pessoal e o fortalecimento dos valores comunitários.

Desde cedo, havia regulamentos que determinavam a submissão aos líderes. Hoffmann se autodenominava “Chefe Superior”, e em grandes viagens tinha dois “Chefes” para ajudá-lo. Na excursão à Floresta da Boêmia, esses líderes foram seu irmão Ernst e Karl Fischer, que mais tarde desempenharia um papel importante no desenvolvimento do Wandervogel. Na fase inicial, a hierarquia dos grupos se baseava na experiência. Os caminhantes experientes eram chamados de “Jovens Caminhantes” e os novatos de “Jovens Raposas”. As equipes de caminhadas eram chamadas de “Rebanhos”. Naquela época, não havia equipamentos específicos para caminhadas; os jovens usavam seus trajes escolares, chapéus de estudante e levavam guarda-chuvas para se proteger do sol, da chuva e do vento.

No final de 1900, Hoffmann nomeou Karl Fischer como seu sucessor antes de partir para Constantinopla, onde iniciou uma carreira diplomática. Ele recomendou a Fischer, na “Conferência de Fichteberg”, que difundisse esse estilo de caminhadas entre os jovens alemães.

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A FUNDAÇÃO DO MOVIMENTO EM 1901

A verdadeira consolidação do movimento Wandervogel aconteceu em 1901, com a liderança de Karl Fischer, considerado o fundador oficial desse movimento. Em 4 de novembro, o “Wandervogel – Comitê de Viagens Escolares” foi fundado no Ratskeller da Prefeitura de Steglitz . V.” (AfS) foi fundada para dar aos grupos de caminhada uma forma jurídica que pudesse ser apresentada às escolas e aos pais. Fischer foi ajudado por algumas pessoas do círculo de notáveis de Steglitz que simpatizaram com seu projeto.

Fischer, também um professor de Berlim, enxergava no Wandervogel um ideal romântico, onde a juventude poderia se unir em torno de valores como liberdade, autenticidade e amor à pátria. Ele transformou o desejo individual de escapar da urbanidade e do materialismo em uma filosofia de vida, onde os jovens formavam grupos para explorar a natureza, entoando canções folclóricas e promovendo a simplicidade em todos os aspectos da vida.

Fischer usou o ideal de estudantes viajantes da Idade Média como modelo romântico para sua organização de caminhadas. Sob sua orientação, o Wandervogel se tornou mais do que uma simples atividade de lazer: era um verdadeiro movimento cultural e social, onde os jovens buscavam viver em harmonia com a natureza e consigo mesmos. A tradição das caminhadas foi enriquecida com a valorização da música folclórica, com canções que expressavam o amor pela terra natal e o desejo de liberdade. Fischer e os membros do movimento acreditavam que a natureza oferecia as respostas para a angústia da vida moderna, e, por isso, o Wandervogel tornou-se uma expressão da busca pela essência humana.

O SIMBOLISMO POR TRÁS DO NOME WANDERVOGEL

A escolha do nome “Wandervogel” não foi ao acaso. Em 1901, Wolfgang Meyen sugeriu o termo, inspirado no poema ‘Waldmeisters Brautfahrt’ de Otto Roquette, em que o termo “Wandervogel” – ou “pássaro errante” – é aplicado a pessoas pela primeira vez. No poema, o termo evoca uma ligação especial entre os “pássaros errantes” e o espírito humano livre, que alça voo ao sabor do vento e busca, na natureza, um reflexo de sua própria alma. Os versos são belos e cheios de simbolismo, como uma homenagem aos que encontram na caminhada um sopro de liberdade e renovação.

“Ihr Wandervögel in der Luft,
im Ätherglanz, im Sonnenduft
in blauen Himmelswellen,
euch grüß’ ich als Gesellen!
Ein Wandervogel bin ich auch
mich trägt ein frischer Lebenshauch,
und meines Sanges Gabe
ist meine liebste Habe.”

“Vocês, pássaros errantes no ar,
no brilho do éter, no perfume do sol,
nas ondas azuis do céu,
eu os saúdo como companheiros!
Também sou um pássaro errante,
carregado por um sopro fresco de vida,
e o dom do meu canto
é o meu bem mais querido.”

Além disso, há teorias alternativas para a origem do nome. Uma delas sugere que ele teria sido inspirado pelo título Birds of Passage, de Walt Whitman, cuja tradução para o alemão recebeu o título Wandervögel. Contudo, essa hipótese é considerada improvável, uma vez que Whitman teve pouca influência no movimento Wandervogel.

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O DECLÍNIO DOS PASSAROS ERRANTES

Após a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha enfrentou crises econômicas e políticas, e o cenário cultural mudou radicalmente. Durante a ascensão do nazismo, o movimento Wandervogel foi alvo de repressão, pois o regime buscava centralizar e controlar todas as organizações de jovens. Em 1933, o governo nazista dissolveu as associações independentes de juventude, incluindo o Wandervogel, e forçou seus membros a se integrarem à Hitlerjugend (Juventude Hitlerista). A diversidade de ideais e a autonomia do movimento eram incompatíveis com os valores e o controle totalitário do regime nazista.

O LEGADO DO MOVIMENTO JUVENIL

Apesar de sua dissolução oficial, o Wandervogel deixou um legado profundo na cultura alemã e na forma como a sociedade vê a juventude. O movimento inspirou as gerações seguintes a buscar uma vida em harmonia com a natureza e a desafiar as normas estabelecidas. Após a Segunda Guerra Mundial, organizações inspiradas nos valores do Wandervogel surgiram novamente, mantendo vivas as ideias de liberdade e respeito ao ambiente natural.

Ao longo de sua história, o Wandervogel representou mais do que apenas uma série de caminhadas e atividades ao ar livre. Foi uma expressão de resistência cultural, um convite ao autoconhecimento e uma busca por valores alternativos em meio a um mundo que se tornava cada vez mais materialista, urbano e industrializado. Mesmo após o fim oficial do movimento, sua influência perdura, inspirando movimentos juvenis e ecológicos até os dias atuais.

Clay Schulze (@clay.schulze) é Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino Liederkranz do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau