Urda Klueger: Por causa do Papai Noel

Por Urda Alice Klueger | Escritora, historiadora e doutora em Geografia

Em 1963, eu tinha aprendido a andar de bicicleta. Minha mãe, porém, sabia a filha que tinha, e me proibia terminantemente de andar de bicicleta na rua.

Era começo de Dezembro, entretanto, e eu estava no colégio, ensaiando a cerimônia de fim de ano, onde receberia a medalha do primeiro lugar. Lembro como usava meu vestido branco de primeira comunhão, e como a tarde estava linda, cheia de sol. Aí, uma menina da minha sala, chamada Eliane Day, resolveu pegar sua bicicleta e ir em casa buscar um lanche. Ela morava ali perto, e eu não titubeei: num instante arranjei uma bicicleta emprestada, e fui com ela.

Foi tudo bem na ida. Esperei na frente da casa de Eliane enquanto ela pegava o seu sanduíche embrulhado em branco guardanapo de pano (papel, naqueles tempos, era raro), e começamos a voltar. Passamos por uma ruazinha chamada 12 de Outubro, em direção ao colégio, onde havia um pontilhão bem numa curva. Foi bem ali, bem alguns metros antes do pontilhão, que havia um menino vestido de Papai Noel.

Admiradora incondicional do Natal, aquele pequeno Papai Noel me fascinou de imediato. Fiquei olhando para ele e pedalando a bicicleta, o pescoço virado para traz e a bicicleta indo para frente, até que:

TCHIBUM!

Eu caíra da ponte dentro do ribeirão! Havia uns 4 metros até lá em cima, e eu olhei para o alto e vi a bicicleta lá, presa na ponte pela beiradinha do pedal, oscilando como um pêndulo!

Não sentia dor nenhuma, e minha preocupação era de como explicar à minha mãe o meu vestido branco de primeira comunhão coberto de lodo daquele ribeirão, que era o destino de todos os esgotos da rua da Glória, em Blumenau/SC. Começou a sair gente de todas as casas, lá em cima, para ver o acidente, e as pessoas se deram as mãos pelo barranco abaixo e me puxaram da água, e então vi o meu tornozelo.

Faziam-se obras naquele ribeirão, e eu tivera o azar de cair com o pé bem sobre uma estaca. Naqueles poucos minutos até me tirarem da água, meu tornozelo inchara completamente, e estava amarelo, azul e verde, virara uma monstruosidade que não podia ser minha! Na verdade, eu estava com uma fratura dupla, que me faria perder, a seguir, dois anos de aula.

Fui levada para o hospital pelo primeiro carro que passou (carros eram mais raros que papel, então), e amarguei aquele verão inteiro no gesso. Acabei ficando com o pé defeituoso, já que eu estava crescendo e o pé cresceu errado dentro do gesso, e foi aí que houve os dois anos de tratamento que me impediram de ir à escola. Bem que a minha mãe me proibia de andar de bicicleta na rua – ela sabia a filha que tinha, capaz de fazer o maior estrago pela visão de um Papai Noel.!

Bem, o resultado da coisa foi que, naquele Natal, não pude sequer ir ver o presépio da casa do tio Júlio, famoso presépio pelo qual a gente esperava o ano inteiro, que ocupava quase toda a luxuosa sala de visitas da casa do meu tio, cheio de lagos e esconderijos, presépio que dava o maior trabalho aos meus primos e primas, que iam em caravana aos matos em busca de barba-de-velho, caetés e outras preciosidades decorativas.

Não vi o presépio da casa do tio Júlio, mas li, como li! Nas tardes sufocantes daquele verão, minha mãe me carregava para o gramado da frente de casa, me deitava sobre uma colcha, e me dava um livro, e eu esquecia que meu tornozelo doía, que encardira para sempre o meu vestido branco da primeira comunhão (minha mãe não esquecia disso), que não podia ver o presépio que os meus primos tinham feitos, e saía a viajar através dos livros. Um dos livros que li nessas tardes, deitada no gramado, era a história de São João Vianey, santo francês de vida muito piedosa, que me trouxe, pela primeira vez, a presença da França para a minha vida. Encantada com aquele livro, muito viajei pela França naquele verão de gesso, o que me fez, a seguir, a acabar me encantando com toda a Literatura e História francesas.

Por causa de um Papai Noel, descobri, entre outras coisas, a França. Se não fosse por ele, talvez aquele tivesse sido um verão comum, comigo a fazer outras artes nas tardes quentes.

Blumenau, 09 de Novembro de 1997.

Urda Alice Klueger

 

 

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