São Nicolau e Krampus: tradição natalina entre o sagrado e o folclórico

Celebrados nos dias 5 e 6 de dezembro, essas festividades simbolizam um contraste único entre bondade e punição. Confira a coluna Hallo Heimat, de Clay Schulze.

Foto: Wikipédia

Com a chegada de dezembro, e do Natal, uma antiga e fascinante tradição renasce nos países de língua alemã, em especial nas regiões alpinas: a celebração do Krampusnacht (Noite do Krampus) e do Nikolaustag (Dia de São Nicolau). Festejadas entre os dias 5 e 6 de dezembro, elas simbolizam um contraste único entre bondade e punição.

São Nicolau, o bispo generoso e protetor das crianças, visita os lares com recompensas para os pequenos bem-comportados, enquanto o aterrorizante Krampus, uma criatura demoníaca, ameaça punir os desobedientes. Essa dualidade reflete o caráter pedagógico da tradição, que busca repassar valores de disciplina e generosidade nas crianças.

A celebração do Dia de São Nicolau e seu misterioso companheiro Krampus é uma mistura de bondade e temor que atravessa séculos. Originada de crenças pagãs e adaptada pela cristandade, a prática não só resiste ao tempo, mas também evolui, preservando sua essência enquanto ganha novas formas.

São Nicolau, o bispo que ficou conhecido por sua caridade e afinidade com as crianças.

O SANTO DA GENEROSIDADE QUE INSPIROU O ESPÍRITO NATALINO

São Nicolau, nascido na antiga Patara, na atual Turquia, no século III, destacou-se como bispo cristão em Mira por sua caridade, cuidado com as crianças e milagres a ele atribuídos. Sua generosidade foi tão marcante que ele se tornou um dos santos mais venerados da cristandade, influenciando diretamente a criação da figura do Papai Noel. Canonizado pela Igreja Católica, Nicolau passou a ser associado ao nascimento do Menino Jesus e ao papel de protetor dos necessitados, consolidando-se como símbolo de bondade e compaixão.

Um dos relatos mais famosos de sua vida é o resgate de uma família empobrecida, para quem Nicolau deixou anonimamente sacos de ouro, salvando as filhas de um destino cruel. Essa história originou a tradição de pendurar meias ou sapatos para receber presentes. Sua relação com crianças e famílias necessitadas fortaleceu sua imagem como figura acolhedora e altruísta, que, mesmo após séculos, ainda inspira a prática de dar presentes no início de dezembro.

São Nicolau enfrentou tempos difíceis, como sua prisão sob o regime do imperador Diocleciano, quando se recusou a renunciar à fé cristã. Libertado sob o governo de Constantino, Nicolau continuou a atuar com firmeza, combatendo heresias e defendendo a justiça. Mesmo enfrentando conflitos internos na Igreja, permaneceu fiel aos seus ideais, sempre em defesa dos mais vulneráveis, especialmente crianças e pobres.

Após sua morte em 6 de dezembro de 350, sua fama como santo milagreiro se espalhou por toda a Europa, consolidando-se como protetor de marinheiros, comerciantes e até como santo casamenteiro. A partir dessa tradição, sua figura foi reinterpretada em diferentes culturas, transformando-se no carinhoso Papai Noel, com a imagem moderna do velhinho de barba branca e saco de presentes, mas mantendo viva sua essência de generosidade e cuidado.

No Dia de São Nicolau, as crianças acordam para encontrar seus presentes ou punições do Krampus.

KRAMPUS, O LADO OBSCURO E SELVAGEM DA TRADIÇÃO

Krampus tem origens mais antigas e sombrias, ligadas aos mitos pré-cristãos das regiões alpinas. Essa figura aterrorizante simbolizava os espíritos selvagens do inverno, responsáveis por castigar os que desrespeitavam as normas da comunidade. Embora existam diversas variações do Krampus, ele é geralmente descrito como uma criatura meio homem, meio demônio, com chifres, pele escura, uma língua vermelha comprida, um manto de pelos e uma máscara esculpida à mão. Esses seres escuros e peludos, às vezes aparecem com correntes para simbolizar que estão sob o controle de São Nicolau, impossibilitados de causar mal às pessoas.

Na Idade Média, a Igreja incorporou essas figuras folclóricas para facilitar a conversão de populações rurais. A fusão entre o bispo cristão e o espírito pagão foi natural no contexto da cristianização, representando um equilíbrio entre virtude e disciplina. São Nicolau passou a visitar crianças no dia 6 de dezembro, premiando os bons com presentes, enquanto Krampus, carregando correntes e uma vara, castigava os malcomportados. Essa dualidade entre recompensa e punição consolidou a tradição e a tornou profundamente enraizada na cultura popular das regiões alpinas.

O termo “Krampus” vem diretamente de sua aparência ameaçadora: Krampen, “garra”, evoca as mãos deformadas e garras afiadas da criatura, reforçando sua associação com forças malignas e selvagens.
Em suas visitas para distribuir presentes, o Papai Noel é geralmente acompanhado por alguns personagens. Muitos de seus companheiros, como o Krampus, são figuras demoníacas que simbolizam o mal. Contudo, essas criaturas estão sob o controle de São Nicolau, reafirmando que o bem sempre triunfa sobre o mal.

Krampuslauf na cidade de Haiming, na Áustria |
Foto: Divulgação / Krampusgruppe Haiming

A TRADIÇÃO RENOVADA EM ESPETÁCULO CULTURAL

O Krampusnacht e o Nikolaustag continuam a ser celebrados em diversos países, adaptando-se às culturas locais e ao espírito do tempo. Na Áustria e Alemanha, a figura de Krampus é especialmente marcante. O Krampuslauf, ou corrida do Krampus, é um espetáculo noturno que atrai multidões. Homens fantasiados com máscaras grotescas e trajes de pele de cabra percorrem as ruas com correntes e sinos, criando uma atmosfera que mistura medo e diversão.

Em contraste, na Suíça, São Nicolau é acompanhado por Schmutzli, uma figura menos ameaçadora que personifica a necessidade de disciplina de maneira mais branda. Já no Tirol do Sul, região de influência italiana, as celebrações de Krampus assumem um tom mais teatral e centrado no entretenimento.

As variações regionais enriquecem essas tradições. Na Baviera, o Buttnmandllaufen reúne figuras cobertas de palha e sinos, enquanto na Áustria, os Perchten — divididos entre Schönperchten (os belos) e Schiachperchten (os feios) — aparecem durante o solstício de inverno, conectando-se a antigas práticas pagãs. Em vilas menores, prevalece o Einkehrbrauch, uma tradição comunitária em que São Nicolau, acompanhado por grupos fantasiados, visita as casas para abençoar as famílias e distribuir presentes. Krampus, nesse contexto, desempenha um papel mais simbólico, reforçando a ideia de redenção e reflexão.

Nos dias atuais, o Krampuslauf tornou-se mais uma atração cultural do que uma tradição de intimidação, especialmente em cidades como Salzburgo, Innsbruck e Munique. Eventos organizados com desfiles de fantasias elaboradas e performances musicais atraem turistas e famílias, transformando a antiga prática em um espetáculo. Apesar disso, em comunidades rurais, a essência original da celebração permanece viva, preservando o caráter educativo e os valores tradicionais.

No mundo contemporâneo, a celebração de São Nicolau e Krampus vai além do folclore. Ela preserva narrativas culturais que moldaram as comunidades alpinas por gerações. O reconhecimento como patrimônio cultural imaterial pela UNESCO, em 2011, reforça sua relevância como símbolo de identidade regional.

Além disso, a tradição serve como um espaço de aprendizado. Escolas e famílias utilizam as figuras de São Nicolau e Krampus para ensinar valores como generosidade, responsabilidade e respeito. Nos eventos públicos, o aspecto teatral atrai turistas e promove a economia local, ao mesmo tempo que celebra e divulga a cultura.

Matéria do Euromaxx sobre o Krampusnacht na Àustria.

 

A TRADIÇÃO VIVA EM SANTA CATARINA

A tradição dos Pelznickel em Guabiruba, Santa Catarina, é uma manifestação cultural única que reflete as influências dos imigrantes alemães na região. Inspirados na figura de São Nicolau, os Pelznickel (ou “Nicolau de Peles”) combinam elementos de recompensa e correção. Vestidos com roupas rústicas de estopa, peles e máscaras, eles visitam casas na época do Natal, sempre acompanhados do Papai Noel, elogiando boas ações e corrigindo comportamentos das crianças.

Embora adaptada ao contexto brasileiro, a prática dos Pelznickel mantém forte ligação com as celebrações de São Nicolau nos países germânicos. Em Guabiruba, a tradição é preservada como parte da identidade cultural local e atrai não apenas moradores, mas também visitantes interessados em conhecer essa peculiar manifestação folclórica.

Tradição dos Pelznickel em Guabiruba (SC) | Foto: David T. Silva

 

ENTRE O MEDO E A ALEGRIA

A tradição de São Nicolau e Krampus é uma representação única da dualidade humana. Enquanto São Nicolau oferece bondade e esperança, Krampus lembra os desafios e medos que devemos enfrentar. Essa dinâmica, que mistura medo e fascínio, continua a encantar adultos e crianças, tornando-se um elo entre o passado e o presente.

Ao assistir a um Krampuslauf ou ouvir os sinos dos Krampus, percebemos que essas figuras, apesar de suas diferenças, compartilham um objetivo comum: lembrar-nos da importância de equilibrar o bem e o mal, a generosidade e a disciplina, em nossa própria vida.

Clay Schulze (@clay.schulze) é Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino Liederkranz do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau


 

 


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