Reichskristallnacht: A Noite dos Cristais

Artigo escrito pelo historiador Sérgio Campregher

Não há outro dia que seja tão significativo para a história da Alemanha que o 9 de novembro. É uma data de vários acontecimentos que marcaram o país. 9 de novembro de 1918 – proclamado a República de uma sacada do Reichstag em Berlim pelo social-democrata Philipp Scheidemann. 9 de novembro de 1923 – os nacional-socialistas de Munique realizaram uma passeata numa tentativa frustrada de golpe contra o governo central.

À frente do movimento, encontrava-se o então ainda desconhecido Adolf Hitler. 9 de novembro de 1938 – Kristallnacht ( a noite dos cristais). Sinagogas foram incendiadas, lojas de judeus foram assaltadas e saqueadas em toda a Alemanha. É o mais terrível entre os acontecimentos históricos ocorridos num 9 de novembro.
9 de novembro de 1989, cai o Muro de Berlim. A reunificação da Alemanha.

 

REICHSKRISTALLNACHT
09/10 DE NOVEMBRO DE 1938 – A NOITE DOS CRISTAIS

Em 7 de novembro de 1938, um polonês de 17 anos de idade, Herschel Grynszpan, que havia crescido na Alemanha, mas estava em Paris, descobriu que seus pais estavam entre os deportados da Alemanha para a Polônia. Grynszpan conseguiu um revólver e marchou para a embaixada alemã, onde atirou no primeiro diplomata que encontrou: um oficial subalterno chamado Ernst vom Rath, que ficou gravemente ferido e foi levado para o hospital.

A atmosfera política no início de novembro de 1938 já estava pesada com a violência antissemita, a medida que o regime nazista e seus seguidores mais ativos continuavam a intensificar a pressão sobre os judeus da Alemanha para que emigrassem. Não é de surpreender que Goebbels decidisse transformar o incidente em um grande exercício de propaganda. No mesmo dia, o Ministério da Propaganda instruiu a imprensa a dar espaço de destaque para o incidente em suas reportagens.

Grande exercício - O atentado de Herschel Grynszpan contra Ernst Vom Rath foi o grande exercício de Propaganda do ministro Goebbels.
Grande exercício – O atentado de Herschel Grynszpan contra Ernst Vom Rath foi o grande exercício de Propaganda do ministro Goebbels.

 

APOIO DA SS E GESTAPO

O episódio devia ser descrito como um ataque da “judiaria mundial” ao Terceiro Reich que acarretaria as “mais pesadas conseqüências para os judeus da Alemanha. Foi um convite claro para os fiéis do Partido agirem. Goebbels instruiu o chefe regional da propaganda em Hesse para lançar ataques violentos às sinagogas e aos prédios da comunidade judaica para ver se um progrom mais difundido era viável.

Enquanto as tropas de assalto lançavam-se à ação, a SS e a Gestapo também eram aliciadas para dar apoio. Em Kassel, a sinagoga foi arrasada por camisas-pardas. Em outras cidades de Hesse, bem como parte da vizinha Hannover, também houve ataques e tentativas de incêndio contra sinagogas, casas e apartamentos da população judaica. Os atos de violência expressaram, declarou a imprensa orquestrada em 09 de novembro, a raiva espontânea do povo alemão contra o ultraje em Paris e seus instigadores.

 

OPINIÃO INTERNACIONAL ADOÇADA

O contraste com um assassinato de um funcionário regional do Partido, Wilhelm Gustloff, por David Frankfurter, um judeu, em fevereiro de 1936, que não gerou nenhum tipo de reação verbal ou física violenta do Partido, seus líderes ou membros devido ao interesse de Hitler em manter a opinião internacional adoçada no ano das Olimpíadas, não podia ser maior. Mostrou que o atentado foi um pretexto para o que se seguiu, não a causa.
Por acaso, quando Grynszpan disparou seu tiro em 07 de novembro de 1938, Hitler era esperado em um encontro de líderes regionais do Partido Nazista e outros membros decanos do movimento em Munique no dia seguinte, véspera do golpe fracassado de 1923. Notavelmente ele não mencionou o incidente em Paris no discurso; era evidente que ele estava planejando a ação seguinte à morte de Vom Rath, que por certo não tardaria a acontecer.

 

INVESTIDA FÍSICA MACIÇA

Ao anoitecer de 09 de novembro, enquanto líderes do partido deslocavam-se para o salão principal da prefeitura de Munique, Hitler foi informado por seu médico pessoal, Karl Brandt, que ele mandara a Paris para cuidar de assistir Vom Rath em seu leito parisiense, que o funcionário da embaixada havia falecido em virtude dos ferimentos às cinco e meia, horário alemão. Assim a notícia chegou não só a ele, mas também a Goebbels e ao Ministério das Relações Exteriores no final da tarde de 09 de novembro. Imediatamente Hitler emitiu instruções a Goebbels para uma investida física maciça e coordenada a judeus da Alemanha, combinada com a detenção de todos os homens judeus que pudessem ser encontrados e seu encarceramento em campos de concentração.

 

Sinagoga em chamas em Berlim – Trajetória para o Holocausto.
Sinagoga em chamas em Berlim – Trajetória para o Holocausto.

 

FRAUDE TEATRAL

Era a oportunidade ideal para intimidar o máximo possível os judeus para que deixassem a Alemanha por meio de uma explosão nacional aterrorizante de violência e destruição. A morte de vom Rath também proporcionaria a justificativa de propaganda para a expropriação final e total dos judeus da Alemanha e sua completa segregação do resto da economia, sociedade e culturas alemãs. Tendo tomado essas decisões. Hitler concordou com Goebbels que elas deveriam ser apresentadas aos fiéis do Partido, em um ato calculado de fraude teatral, como uma reação no calor do momento ao assassinato de vom Rath, tomada em um espírito de choque e raiva súbitos.

As instruções verbais do líder da propaganda do Reich foram entendidas pelos líderes do Partido Nazista de que os mesmos não deveriam aparecer publicamente como organizadores das demonstrações da violência contra os judeus, mas que deveriam coordená-las e levá-las a cabo. As instruções foram imediatamente retransmitidas por telefone para grande parte dos camaradas do Partido em seus escritórios regionais.

 

TELEX

Nas sedes regionais do Partido, os funcionários telefonaram para comandantes das tropas de assalto e ativistas partidários das localidades, repassando à cadeia de comando a ordem para queimar sinagogas e depredar lojas, casas e apartamentos judaicos. Quando Hitler e Himmler encontraram-se nos aposentos do primeiro, pouco antes do tradicional juramento dos recrutas da SS à meia-noite, discutiram rapidamente o progrom. Como resultado, foi emitido outro comando central, dessa vez mais formal, por telex, às cinco para a meia noite. Partiu de Heinrich Müller, subordinado de Himmler e chefe da Gestapo, e transmitiu a ordem pessoal de Hitler para comandantes de polícia alemães de todo o país, também registrado por Goebbles em seu diário particular no dia seguinte, para a detenção de um grande número de judeus:

Ações contra judeus, em particular contra suas sinagogas, ocorrerão muito em breve em toda a Alemanha. Elas não devem ser interrompidas. Entretanto, devem ser tomadas medidas em cooperação com a Polícia da Ordem para se evitar saques e outros excessos especiais… a detenção de cerca de 20 mil a 30 mil judeus do Reich deve ser preparada. Sobretudo judeus de posses devem ser escolhidos.

Um telex adicional enviado por Heydrich à 1h20min da madrugada mandou a polícia e o serviço de segurança da SS não ficarem no caminho da destruição de propriedade judaica ou impedirem atos violentos contra judeus alemães; também advertiu que a pilhagem não devia ser permitida, estrangeiros não deviam ser tocados mesmo que fossem judeus, e deveria se tomar cuidado para garantir que prédios alemães perto de lojas ou sinagogas judaicas não fossem danificados. Deveriam ser detidos tantos judeus quanto coubessem nos campos de concentração.

AÇÃO COORDENADA – Posteriormente um telegrama assinado por Reinhard Heydrich é enviado a vários escritórios coordenando as ações da policia com o partido nazista.

Às 2h56min da madrugada, um terceiro telex, emitido por instigação de Hitler pelo gabinete de seu assessor, Rudolf Hess, reforçou o último ponto, acrescentando que havia sido ordenado “do mais alto nível” que não deveria ser ateado fogo a lojas judaicas devido ao perigo para os prédios alemães vizinhos. A essa altura o progrom estava em pleno andamento.

As ordens iniciais via telefone de Munique para os funcionários dos líderes regionais foram rapidamente transmitidas para baixo ao longo da cadeia de comando. Junto com as sinagogas, camisas pardas e SS também miraram lojas e prédios judaicos.

Quebraram as vitrines, deixando o pavimento no lado de fora coberto com uma grossa camada de vidro quebrado, Com seu humor mordaz característico, atenuado por um tom irônico, o povo de Berlim logo começou a se referir aos dias 9 e 10 de novembro, como a “Noite dos Cristais do Reich”, ou a Noite dos Vidros Quebrados. Mas os camisas-pardas destroçaram mais que vitrines de lojas; invadiram prédios judaicos por toda a parte, destruíram o que havia no interior e saquearam o que podiam. E depois rumaram para as casas e apartamentos de famílias judaicas com o mesmo intento.

 

ÓDIO VISCERAL

A violência extrema e deliberada e a humilhação degradante impostas as judeus durante o progrom eram familiares em função do comportamento dos camisas-pardas nos primeiros meses de 1933. Mas dessa vez foram muito mais longe, e nitidamente mais difundidas e mais destrutivas. Demonstraram que o ódio visceral aos judeus agora havia se apoderado não só dos camisas pardas e dos ativistas radicais do Partido, mas também e acima de tudo – mas não apenas – dos jovens, sobre quem cinco anos de nazismo nas escolas e na Juventude Hitlerista haviam tido um efeito evidente. O Ministério da Propaganda de Goebbels não perdeu tempo em apresentar esses eventos ao mundo como uma explosão espontânea de raiva justificada do povo alemão. “O golpe desferido em nós pela judiaria internacional” disse a Folha Diária de Notícias de Göttingen (Göttingen Tageblatt) a seus leitores em 11 de novembro de 1938, “foi poderoso demais para que a nossa reação fosse apenas verbal. A fúria contra o judaísmo represada durante gerações foi desencadeada. Os judeus podem agradecer a seu companheiro racial Grünspan (ou seja Grynszpan), aos mentores espirituais ou reais dele e a si mesmos por isso”.

 

MANIPULAÇÃO DOS FATOS

Contudo o jornal garantiu aos leitores que “os judeus foram bastante bem tratados no curso dos acontecimentos”. Ainda mais descaradamente o Ministério da Propaganda instruiu os jornais a 10 de novembro de 1938 para afirmar que “vidraças foram quebradas por ali e aqui; as sinagogas pegaram fogo por si ou irromperam em chamas de alguma forma”. Goebbels insistiu em que as histórias não deviam ganhar muito destaque na imprensa, que era lida fora da Alemanha e assim como dentro, claro, e que não devia haver fotos dos estragos.

Em 11 de novembro de 1938, o jornal nazista o Observador Racial atacou a hostilidade da imprensa estrangeira basicamente judaica contra a Alemanha por reagir em demasia contra o progrom, desprezando as reportagens como mentiras. “A reação espontânea do povo alemão ao assassinato covarde de vom Rath veio de um instinto saudável” declarou Goebbles. O governo concluiu, tinha feito tudo em seu poder para deter as manifestações e o povo havia obedecido. A Alemanha e os alemães não tinham nada de que se envergonhar.

Reação da imprensa internacional: The New York Times de 11 de novembro de 1938
Reação da imprensa internacional:
The New York Times de 11 de novembro de 1938

Essa entretanto não foi a visão da imprensa internacional, que reagiu com um misto de choque e incredulidade. Para muitos observadores estrangeiros, os eventos de 9-10 de novembro de 1938 de fato foram um ponto de virada em sua avaliação do regime nazista.

  • *POGROM – ataque violento maciço a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente (casas, negócios, centros religiosos).
  • Fonte consultada: O TERCEIRO REICH NO PODER – Richard J. Evans –Editora Planeta do Brasil, 2011.