Artigo do historiador Sérgio Campregher
A possibilidade de uma reedição de “Mein Kampf” (“Minha Luta”) vem causando polêmica na Alemanha. Em 1º de janeiro 2016 expiram os direitos autorais e o panfleto antissemita passa a ser de domínio público.
A publicação do manifesto que enuncia as bases ideológicas do programa político nazista e teoriza sobre o desejo de erradicação dos judeus seguirá proibida por decisão dos ministros regionais da Justiça da Alemanha, com o objetivo de impedir qualquer “incitação ao ódio” e por respeito às vítimas do nazismo.
Mas o fim da proteção dos direitos autorais permite pela primeira vez no país a publicação de uma versão comentada por historiadores.
Isto é justamente o que pretende fazer o Instituto de História Contemporânea de Munique (IFZ): uma edição crítica do “Mein Kampf”, que estará disponível nas livrarias alemãs em janeiro de 2016. Na França existe uma iniciativa similar, também marcada pela polêmica.
Que livro é este?
Mas que livro é este? E porque desperta tanto interesse? Escrito por Hitler, o manifesto nazista e autobiográfico foi publicado pela primeira vez em 1925 e apresenta sua visão sobre a ascensão da Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial, assim como a ideologia política antissemita do seu partido, o nacional-socialismo.
Mein Kampf é proibido de ser editado na Alemanha, mas pode ser encontrado com facilidade na internet, com traduções em diversos idiomas.
O Livro
Mein Kampf é um enorme volume de 700 páginas densas, de estilo empolado e que martela, do início ao fim, idéias fixas. Redigido com simplicidade, o livro põe ao alcance do grande público toda sorte de escritos e teorias. Hitler impõe-se por um discurso de absoluto radicalismo. Evidenciando um alto nível de exigência, tanto em suas aspirações quanto na violência de suas idéias. Ele forja, de si mesmo, uma imagem que acabará atraindo os mais ferozes adversários da república.
Mein Kampf é um livro suscetível a satisfazer diferentes expectativas: do antissemitismo ao anticomunismo. A obra, dirigi-se a um vasto público e a categorias potencialmente antagônicas: operários, camponeses, burgueses, militares, monarquistas, ex-combatentes que se identificaram com o percurso de Hitler, mas também magnatas da indústria que vêem nele um homem da ordem, capaz de engambelar as classes populares. Neste livro, cada um encontra o que melhor lhe aprouver.
Hoje, distingue-se entre a maioria dos historiadores um consenso segundo o qual, mais que um programa político no sentido tradicional da expressão, o livro de Hitler não deixa de ser um autêntico projeto político. Um projeto preciso em suas intenções e vago no que diz respeito aos meios de pô-las em prática. Nem mais nem menos.
Na obra apresenta suas obsessões racistas, seu desprezo pelo indivíduo, seu gosto pela força bruta, seu desejo de eliminar os judeus, os quais “em virtude de seu universalismo” seriam necessariamente pacifistas e internacionalistas. Acontece que para Hitler “o pacifismo é o pecado mais mortal, pois significa a derrota da raça na luta pela vida”.
A tese principal de Mein Kampf é simples: o homem é um animal que combate, e em conseqüência a nação não passa de uma comunidade de combatentes. Um país ou uma raça que deixam de combater ficam ameaçadas de extinção. Só a violência bruta pode garantir a sobrevivência da raça. No livro, Hitler já anunciava a maior parte dos crimes que viria cometer. Programa de terror , projeto racista e totalitário, ambição declarada de dominar o mundo.
Mein Kampf nutre de uma violenta paixão nacionalista, um ódio da modernidade democrática e do liberalismo e de uma ingênua fé na ciência. Na pena de Hitler, este sentimentos assumem a forma de um ultra nacionalismo tingido de romantismo, visando a supremacia absoluta da Alemanha, de um cientificismo distorcido, derivado do neodarwinismo – para a qual a vida é um combate em que só sobrevivem os mais fortes e das teorias do francês Gobineau, segundo quem as raças não são iguais e lutam para dominar o mundo. Hitler também acredita na veracidade de uma célebre contrafação: os Protocolos dos sábios de Sião, livro que sabidamente foram forjados pela polícia secreta russa.
O historiador Edouard Husson vê nesse antissemitismo radical, alheio a toda razão, uma explicação para a repercussão de Mein Kampf em grande parte da população alemã. “A lógica profunda desse livro está no fato de que Hitler tem uma resposta para todos os fracassos , seus fracassos pessoais e os fracassos da Alemanha: são sempre os judeus. Se ele fracassou nas Belas-Artes, foi culpa dos judeus, se a Alemanha foi derrotada na Primeira Guerra Mundial, foi por causa da conspiração judaica”. Sua força esta na mistura da autobiografia com o destino coletivo. É isto que seduz muitos alemães: eles se identificam com ele, no nível pessoal e individual.
O que Hitler escreve, a parte, naturalmente, os aspectos biográficos, não saiu da imaginação doentia de um monstro que se tivesse abatido sobre a Alemanha e o mundo.
Mein Kampf é em grande medida reflexo – e produto – de seu tempo. É bem verdade que Hitler leva o antissemitismo a graus extremos. Todavia, Mein Kampf revela esta verdade importante: esse livro não é apenas um testemunho do ódio antissemita de um psicopata obsessivo, que por obscuras razões pessoais, tivesse decidido eliminar o povo judeu; é o testemunho de um ódio habitual no mundo ocidental, de uma animosidade ancestral.
Desse modo Mein Kampf não é apenas um livro do III Reich: é um breviário do ódio, derivado da face sombria do Ocidente.
Hitler era indubitavelmente a fonte de toda a autoridade e o arbítrio final, mas o seu poder desenfreado não repousava exclusivamente na sua força de vontade, e certamente não residia em um planejamento cuidadoso, mas sim no funcionamento interno do sistema e na disposição de um grande número de alemães de lhe emprestar total apoio e dedicação absoluta. Aqueles que ainda hoje falam do “fascínio”do fenômeno Hitler estão influenciados por este desprezível megalomaníaco.
Em Mein Kampf, Hitler enfatizou a importância fundamental da “crença religiosa” e do “auto-sacrifício” para o sucesso de qualquer movimento político. Mais tarde ele definiu o nacional-socialismo com um “credo apolítico” e como uma igreja, insistindo em afirmar que não somos apenas um movimento, somos mais que uma religião!. Ao mesmo tempo zombava dos adoradores de Wotan e dos Siegfrieds de poltrona com as suas runas e seus antigos nomes germânicos, que queriam substituir o cristianismo por uma religião germânica.
O nacional-socialismo, assim como as igrejas tinha um calendário próprio: dia 30 de janeiro era celebrado como o dia da chamada “tomada do poder”; 20 de abril, o dia de aniversário de Hitler (celebrado em Blumenau no ano de 1934), era seguido pelo dia nacional do trabalho que era 1º de maio, que também era Dia das Mães, o festival da colheita em outubro e o dia 09 de novembro o aniversário do Golpe de Munique ( o putsch da cervejaria) que era celebrado na própria Munique – a “capital do movimento”.
Em cada ato bárbaro há um elemento humano. E isso, é o que faz com que o ato de barbárie seja tão desumano. Mein Kampf manteve sua influência na atualidade quando do massacre em Columbine, ocorrido em uma data simbólica: 20 de abril de 1999 no Condado de Jefferson, Colorado – Estados Unidos. Influenciou também o massacre na Noruega em 22 de julho de 2011. Os atentados foram perpetrados por um ativista de extrema-direita que escreveu um manifesto de 1500 páginas de cunho xenófobo e neonazista sob influência de Mein Kampf.
A barbárie pode conviver facilmente com a democracia mais desenvolvida, e esta por sua vez de modo algum se preserva na selvageria. O nazismo se alinhou nas falhas da democracia. Lembremos que a Alemanha, foi contemporânea no avanço das liberdades fundamentais, do império da democracia na opinião pública e do reconhecimento das minorias religiosas.
Porém é preciso lembrar que Hitler proveio da Alemanha democrática da década de 1930. Por isso é que Mein Kampf lembra as nações civilizadas que a vitória das idéias democráticas não as preserva dos recuos e a que a razão democrática, não é o credo de toda a humanidade.
O mundo livre foi a primeira vítima das idéias nazistas. Paroxismo de ódio antissemita, Mein Kampf também representa a negação da sociedade democrática, das liberdades fundamentais, do iluminismo, do progressismo, da mestiçagem e da igualdade entre os indivíduos.