O Carnaval alemão é uma das festas mais animadas do país, mas sua celebração varia bastante conforme a região. As festividades mais conhecidas ocorrem ao longo do Rio Reno, em cidades como Colônia, Düsseldorf e Mainz, onde grandes desfiles, fantasias elaboradas e muita música tomam conta das ruas. No entanto, essa tradição não é uniforme na Alemanha ou nos países de lingua alemã.
Em diferentes partes do país, a festa recebe nomes distintos e assume características próprias. Enquanto na Renânia ela é chamada de “Karneval”, em Baden-Württemberg e Hessen é conhecida como “Fastnacht”, e na Baviera e Saxônia, o termo mais usado é “Fasching”. Apesar das diferenças, todas essas celebrações marcam o período de festividades que antecede a Quaresma.
As origens do Carnaval na Alemanha remontam a tempos antigos, com possíveis influências de rituais pagãos de fertilidade e festividades romanas. Com o avanço do cristianismo, essas comemorações foram incorporadas ao calendário religioso como uma oportunidade para excessos e diversão antes do período de abstinência da Quaresma.
No entanto, bem ao sul, na região alpina, existe uma tradição carnavalesca menos conhecida, mas igualmente rica em história e simbolismo: a Matschgern ou Maschkera, uma festividade ancestral que preserva elementos medievais e folclóricos.
UM RITUAL DE PASSAGEM DO INVERNO
A Matschgern é uma antiga tradição carnavalesca alpina, especialmente preservada em vilarejos austríacos conhecidos como MARTHA (Mühlau, Arzl, Rum, Thaur e Absam), no distrito de Innsbruck. Diferente do carnaval renano, marcado pela sátira política e desfiles organizados, a Matschgern mantém uma forte ligação com o folclore e o misticismo, trazendo às ruas figuras mascaradas que representam personagens simbólicos, muitas vezes ligados à renovação da natureza e à luta entre o inverno e a primavera.
A Matschgern tem raízes profundas nos antigos rituais pagãos da Idade Média, quando os povos alpinos realizavam celebrações para expulsar os maus espíritos do inverno e dar boas-vindas à nova estação. Elementos como máscaras esculpidas em madeira, trajes elaborados e danças coreografadas são vestígios dessas antigas festividades, que evoluíram ao longo dos séculos, mas mantiveram seu significado na cultura popular tirolesa.
Com o passar dos séculos, essas tradições se mesclaram ao Carnaval medieval, que introduziu elementos cômicos e satíricos à festa. Essa influência se combinou às tradições alpinas, resultando em um evento único, onde personagens exagerados, danças e desfiles desempenham um papel fundamental. A Matschgern também reflete a forte cultura artesanal da região alpina, com máscaras esculpidas à mão que são passadas de geração em geração.
A interpretação desses e de costumes semelhantes é controversa. A literatura mais antiga remonta o costume a um culto de fertilidade pré-cristão. Acredita-se que o inverno e as forças das trevas são simbolizados pelas máscaras feias. A literatura recente vê esses costumes carnavalescos como uma instituição promovida pela igreja, que visa contrastar o bem e o mal.
O nome “Matschgern” está diretamente ligado às máscaras e à encenação teatral desse carnaval. Ele deriva do termo dialetal “matschgern”, que significa algo como “zombar” ou “brincar de maneira irreverente”. Os participantes, conhecidos como Matschgerer, assumem diferentes personagens, exagerando seus gestos e expressões para entreter o público e reforçar o espírito caótico e cômico do Carnaval.
AS MÁSCARAS E OS PERSONAGENS – QUEM SÃO OS MATSCHGERER?
A Matschgern não seria a mesma sem suas icônicas figuras mascaradas (Matschgerer), cada uma carregando um significado especial dentro da tradição. Esses personagens, cada um com comportamento específico, esculpidos em madeira e ricamente ornamentados, não são apenas elementos estéticos do Carnaval alpino, protagonistas de pequenas encenações que misturam humor, sátira e folclore. A seguir, conheça os principais personagens dessa festa única.
Die Hexe – A bruxa representa o significado central desse costume: expulsar o inverno, despertar a primavera e celebrar o culto à fertilidade. A performance começa com a entrada das bruxas, que abrem espaço para a sequência de personagens. Com suas vassouras de galhos, varrem a área e até mesmo os sapatos dos espectadores ao redor, simbolizando a purificação do mal.
Der Zottler – Representam as figuras selvagens do inverno, simbolizando as forças obscuras, mas essencial no culto místico da fertilidade. Toda essa performance ocorre em meio a muito barulho, gritos e chamados guturais, criando um espetáculo verdadeiramente arcaico e primitivo.
Der Spiegeltuxer – Considerado o personagem mais imponente da Matschgern, o Spiegeltuxer é facilmente reconhecível por sua máscara ornamentada e pelo espelho no topo de seu chapéu. O espelho tem um significado simbólico importante: acredita-se que ele reflete os maus espíritos e os afasta, garantindo um novo ciclo de fertilidade e prosperidade. Seu traje é ricamente decorado com fitas coloridas e bordados detalhados, reforçando seu papel como figura central na celebração.
Der Alte – O casal de idosos, formado por um velho e sua companheira, é uma das figuras mais cômicas da Matschgern. O homem, com uma máscara enrugada e exagerada, dança de maneira desajeitada e animada, muitas vezes executando passos do Schuhplattler, sapateado típico da região alpina. Já a mulher, interpretada muitas vezes por um homem vestido de senhora, reage de forma exagerada às travessuras do parceiro, criando cenas hilárias. Essa dupla representa a sátira da velhice e o contraste entre o vigor do carnaval e a passagem do tempo.
Der Bär (und Bärentreiber) – O urso é uma das imagens mais antigas e simbólicas do carnaval europeu, representando a luta entre a natureza selvagem e a civilização humana. Na Matschgern, a cena envolve um urso de pelos desgrenhados, preso a correntes e tentando se libertar, enquanto seu treinador tenta controlá-lo. O confronto entre os dois gera momentos de tensão cômica, com o urso atacando espectadores e rolando pelo chão em uma briga fingida com seu domador.
Der Bock – O bode é um personagem exclusivo da região de Absam e tem um significado duplo dentro da tradição: ele simboliza tanto a fertilidade quanto a sátira social. Seu traje inclui uma grande máscara com chifres e um corpo coberto por pele de cabra. Durante as apresentações, o personagem do bode protagoniza cenas humorísticas em que tenta escapar ou enfrenta desafios absurdos, como ser ordenhado por um camponês, algo obviamente impossível. Essa cena reforça o caráter burlesco do carnaval e o espírito irreverente da festa.
Das Fasserrössl – Diretamente inspirado na antiga tradição dos fabricantes de barris da cidade de Hall, o Fasserrössl é um personagem que recria uma cena caótica e engraçada. Ele representa um cavalo pertencente a um nobre viajante que precisa ser ferrado em uma oficina de ferreiros. No entanto, os aprendizes estão bêbados e são incapazes de pregar as ferraduras corretamente, gerando uma bagunça generalizada. Entre tropeços, quedas e broncas do mestre ferreiro, o Fasserrössl se torna um dos momentos mais aguardados da Matschgern, garantindo risadas do público.
Esses personagens fazem da Matschgern um evento único, misturando humor e folclore. Suas performances, transmitidas de geração em geração, mantêm viva essa tradição carnavalesca do Tirol, trazendo à tona o espírito irreverente e festivo da região.
OS DESFILES PELAS RUAS DAS VILAS
O ponto alto da Matschgern são os desfiles, (na verdade uma procissão festiva), quando os personagens mascarados percorrem as ruas estreitas de Absam e cidades vizinhas. Eles saem em grupos organizados, cada um representando suas figuras tradicionais. O desfile é um espetáculo visual impressionante, com cores vibrantes, trajes elaborados e performances teatrais que animam a multidão.
Diferente de muitos desfiles carnavalescos onde o público apenas assiste, na Matschgern a participação das pessoas é essencial. Os personagens se aproximam dos espectadores, provocando reações inesperadas. O Urso, por exemplo, tenta “atacar” os transeuntes, enquanto o Velho dança com as mulheres da plateia. Já o Bode cria confusão fingindo desobediência e resistindo aos comandos de seus cuidadores. Essa proximidade gera momentos de surpresa e diversão, tornando a experiência ainda mais autêntica.
A música tem um papel fundamental na Matschgern. Bandas tradicionais acompanham o desfile tocando marchas carnavalescas e músicas folclóricas dos Alpes. Os dançarinos, especialmente os Schuhplattler, executam coreografias que combinam força e ritmo, batendo os pés e as mãos na roupa em sincronia com a música. O Spiegeltuxer, com seu chapéu espelhado, realiza uma dança especial, destacando-se entre os demais personagens. Esses elementos garantem que a festa seja não apenas um espetáculo visual, mas também um evento dinâmico e animado.
A MASCHKERA EM MITTENWALD
Fixada ao pé dos Alpes, no lado alemão, Mittenwald é mundialmente conhecida pela fabricação de violinos, mas durante o ‘Fosnocht’, (a temporada de carnaval na região), são as máscaras de madeira esculpidas a mão que ganham destaque.
A Maschkera é uma tradição carnavalesca enraizada especialmente nas cidades de Mittenwald, Krün e Wallgau, na região do Werdenfelser. A festa atinge seu ápice na Unsinniger Donnerstag (Quinta-feira dos Tolos), quando homens mascarados percorrem as vilas tocando música, fazendo barulho e interagindo de forma irreverente com o público. Pontualmente ao meio-dia, tocadores de sinos fazem um grande alvoroço para anunciar a chegada da primavera – uma tradição que remonta a cerca de 500 anos.
Na tradição local, o barulho desempenha um papel essencial, com sinos de vaca pesados sendo usados para “despertar” a primavera. Durante os desfiles, é possível ver uma longa fila de homens vestindo Lederhosen e máscaras, agitando pesados sinos de vaca enquanto dançam pelas ruas. A barulheira ajuda a espantar qualquer resquício das festas de fim de ano. As máscaras de madeira têm a função de afastar os últimos vestígios do inverno e qualquer espírito maligno que ainda possa estar escondido pelos cantos escuros.
A tradição nessa região vai além das danças de rua e do barulho. À noite, nas tavernas locais, os Maschkera entram de surpresa, convidam as mulheres para dançar, se divertem sem serem reconhecidos e, de repente, desaparecem!
Desfile dos Maschkera em Mittenwald
UM PATRIMÔNIO CULTURAL AUSTRÍACO
A Matschgern não é apenas uma tradição festiva, mas um patrimônio cultural de grande valor para as vilas alpinas. Seu reconhecimento pela UNESCO como parte do patrimônio cultural imaterial da Áustria reforça sua importância histórica e seu papel na identidade local. As máscaras esculpidas à mão, os personagens folclóricos e a atmosfera vibrante dos desfiles demonstram como essa tradição se mantém viva há séculos.
A Matschgern continua a ser uma celebração única e vibrante, demonstrando como o Carnaval pode assumir formas distintas em diferentes partes do mundo. Enquanto os foliões do Reno desfilam ao som de bandas e sátiras políticas, no Tirol, o Carnaval ganha uma atmosfera mágica, onde máscaras, rituais e tradição se misturam para celebrar a transição das estações e a força do folclore local.
Para os tiroleses, a Matschgern não é apenas uma festividade de Carnaval, mas um símbolo da identidade cultural local. A tradição resiste ao tempo, sendo celebrada com o mesmo entusiasmo por jovens e idosos. Além de preservar costumes ancestrais, o evento reforça o senso de comunidade, reunindo moradores e visitantes em uma celebração que une história, arte e diversão.
Clay Schulze (@clay.schulze) é Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino Liederkranz do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau
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