Influência das lendas medievais germânicas no Tannhäuser de Wagner

A coluna Hallo Heimat, de Clay Schulze, escreve sobre a composição de uma obra musical que ocorreu em um período significativo na vida do compositor alemão, marcando tanto desafios pessoais quanto artísticos que influenciaram sua carreira.

O Castelo de Wartburg, situado majestosamente sobre uma colina, próximo à cidade de Eisenach, na Turíngia, é um testemunho vivo de quase mil anos de história. Construído por Ludwig der Springer por volta de 1067, o castelo se tornou uma fortaleza que abrigou eventos significativos e personalidades marcantes da história alemã. Hoje, como Patrimônio Mundial da UNESCO, Wartburg é reverenciado não apenas por sua arquitetura imponente, mas também pelo seu papel na evolução cultural e espiritual da Alemanha.

Entre as figuras históricas que residiram em Wartburg, destaca-se Isabel da Turíngia, mais conhecida como Santa Isabel da Hungria. Vivendo no castelo entre 1211 e 1227, Isabel dedicou sua vida à caridade e ao cuidado dos pobres, tornando-se um símbolo de compaixão cristã. Além de Isabel, o castelo é notoriamente associado a Martinho Lutero, que, entre 1521 e 1522, se escondeu ali sob o pseudônimo de Junker Jörg. Durante sua estadia, Lutero traduziu o Novo Testamento para o alemão, democratizando o acesso às escrituras sagradas e incentivando a alfabetização em larga escala.

O compositor alemão Richard Wagner encontrou em Wartburg, um símbolo duradouro da fé cristã e da busca pela redenção, assim, o cenário ideal para seu drama operístico “Tannhäuser e o Torneio de Trovadores de Wartburg” (Tannhäuser und der Sängerkrieg auf Wartburg). A combinação de lendas germânicas e temas de redenção espiritual que permeiam a ópera está profundamente enraizada nas lendas e na atmosfera histórica do castelo.

Castelo de Wartburg | Foto: Domínio Público

WAGNER E SUA INCESSANTE BUSCA PELA REDENÇÃO

A composição de “Tannhäuser” ocorreu em um período significativo na vida de Richard Wagner, marcando tanto desafios pessoais quanto artísticos que moldaram sua carreira. Wagner estava no início de sua trajetória na década de 1840 e, embora já tivesse obtido algum reconhecimento com óperas anteriores, como “Rienzi” e “O Navio Fantasma” (Der fliegende Holländer), ainda não se firmara como um dos grandes compositores de sua época. Ele buscava criar algo que transcendesse o entretenimento tradicional da ópera, mergulhando mais profundamente em questões filosóficas e existenciais.

Durante essa época, Wagner foi profundamente influenciado pelo romantismo alemão e pelas ideias nacionalistas e revolucionárias que permeavam a Europa. Ele também era um leitor ávido de literatura medieval e mitologia germânica, que se tornaram fontes centrais de inspiração para “Tannhäuser”. Essas influências intelectuais foram fundamentais para o desenvolvimento de seu estilo único, o Gesamtkunstwerk, que buscava a integração de drama, música e artes visuais em uma obra coesa.

“Tannhäuser” teve um impacto profundo na carreira de Wagner, apesar da resistência inicial de publico e crítica, com o tempo a obra foi amplamente reconhecida como uma das mais importantes de Wagner, tanto por sua beleza musical quanto por sua exploração de temas universais de redenção, desejo e espiritualidade.

A ópera abriu caminho para suas futuras obras-primas, como “Lohengrin” e “O Anel do Nibelungo”, consolidando seu legado como um dos maiores compositores de ópera da história.

Retrato do compositor alemão Richard Wagner | Foto: Archivio Storico Ricordi

O ENREDO DE TANNHÄUSER: ENTRE O SAGRADO E O PROFANO

“Tannhäuser” é uma ópera em três atos, que narra a luta entre os impulsos terrenos e espirituais do menestrel Tannhäuser. A trama é inspirada em lendas medievais alemãs, explorando temas profundos como o amor, a redenção e o conflito entre o sagrado e o profano, elementos que refletem as preocupações filosóficas de Wagner.

No início da ópera, Tannhäuser está no interior da montanha de Vênus, localizada nas montanhas Hörselberg, próximas a Eisenach. Esse mundo é dedicado exclusivamente à sensualidade. Como mortal, Tannhäuser conseguiu entrar, mas começa a sentir-se cada vez mais cansado dos prazeres que experimenta ali. Vênus tenta convencê-lo a permanecer, advertindo que a humanidade nunca o perdoaria por ter ficado com a deusa pagã do amor, tornando impossível sua salvação. Contudo, Tannhäuser decide firmemente: “Minha salvação repousa em Maria!”.

Ao invocar Maria, o mundo de Vênus desaparece, e ele se vê transportado para um vale encantador na Turíngia, aos pés do castelo de Wartburg. Lá, ele se reconcilia com os cavaleiros que havia abandonado e decide participar de um concurso de canto no dia seguinte, também com o objetivo de conquistar o coração de Elisabeth, sobrinha do Conde.

No segundo ato, Tannhäuser e Elisabeth se reencontram. Durante um diálogo entre eles e uma conversa entre Elisabeth e o Conde, é sugerida quase explicitamente a união desejada entre os dois. O concurso de cantores tem início, com cada participante cantando sobre a essência do amor. Tannhäuser, contudo, torna-se cada vez mais inquieto, percebendo que os outros trovadores desconhecem a verdadeira sensualidade que ele vivenciou no mundo de Vênus. Quando chega sua vez de cantar sobre o amor, ele confessa ter estado no Venusberg, provocando horror e indignação geral, levando à sua condenação pelo príncipe. Na moral da época, invocar ou permanecer com deuses pagãos era considerado idolatria. Apenas graças à intercessão de Elisabeth, Tannhäuser é autorizado a juntar-se aos peregrinos que partem para Roma em busca de penitência e perdão.

No terceiro ato, Elisabeth espera em vão pelo retorno de Tannhäuser. Ele não está entre os peregrinos que voltam de Roma com a graça divina. Desesperada, Elisabeth se retira, recusando silenciosamente o consolo de Wolfram. Wolfram canta, em lamento, uma premonição de morte que se espalha como o crepúsculo, saudando o “astro da tarde” – até mesmo um defensor do Minnesang puro presta homenagem a Vênus. Nesse momento, Tannhäuser se aproxima. Ele esteve em Roma, mas não recebeu perdão (relato de Roma). O papa, apontando para seu bastão pastoral, disse: “Assim como este bastão em minha mão jamais florescerá novamente com verde fresco, também não poderá surgir salvação para você das chamas ardentes do inferno.”

Desesperado, Tannhäuser deseja retornar ao reino de Vênus. Ela aparece, mas Wolfram impede Tannhäuser de tomar essa decisão desesperada. Tannhäuser então vê um cortejo fúnebre descendo a montanha, carregando o corpo de Elisabeth para o túmulo. Seu desejo de morrer para obter o perdão de Tannhäuser foi atendido. Vênus desaparece instantaneamente.

Tannhäuser cai sobre o caixão de Elisabeth e morre, pedindo que ela interceda por ele junto a Deus. “Santa Elisabeth, ora por mim.” Peregrinos trazem o bastão do papa, miraculosamente florescido: “O bastão seco na mão do sacerdote floresceu com verde fresco” – um sinal de que Deus concedeu a redenção a Tannhäuser. O coro louva a Deus: “Deus está acima de todo o mundo, e sua misericórdia não é zombaria!” A obra termina com a frase: “A graça e a salvação são concedidas ao penitente, que agora entra na paz dos bem-aventurados!”

Tannhäuser e o Torneio de Trovadores de Wartburg, óleo sobre tela, (1920) |  Pintura de Ferdinand Leeke.

A TESSELAGEM MITOLÓGICA E HISTÓRICA DE WAGNER

Wagner, ao compor “Tannhäuser”, mergulhou profundamente na rica tapeçaria das lendas germânicas, que, por séculos, alimentaram o imaginário popular e literário da Alemanha. A mitologia germânica, com seus deuses, heróis e espíritos da natureza, forneceu a Wagner não apenas temas, mas também uma estrutura narrativa que espelha a luta entre forças opostas: o sagrado e o profano, o divino e o humano, o espiritual e o terreno.

“Tannhäuser” é a quinta ópera completa de Wagner, composta a partir de 1842, e baseia-se principalmente em duas lendas originalmente independentes: a de Heinrich von Ofterdingen e a Guerra dos Cantores no Wartburg e a lenda de Tannhäuser.

Tannhäuser e o Mito do Herói

A lenda de Tannhäuser é uma das narrativas mais fascinantes da mitologia germânica, envolvendo temas de tentação, arrependimento e busca de redenção. Tannhäuser era um cavaleiro e trovador que, segundo a lenda, foi seduzido e passou um longo período no Venusberg, uma montanha encantada habitada por Vênus, a deusa do amor.

Após anos de vida luxuriosa e pecaminosa ao lado de Vênus, Tannhäuser sente o peso de seus pecados e o vazio espiritual resultante de sua existência hedonista. Decide, então, deixar o Venusberg e empreender uma peregrinação a Roma para buscar o perdão do Papa Urbano IV. O encontro com o Papa é um momento crucial na lenda: Tannhäuser confessa seus pecados, mas Urbano IV, inflexível, declara que seus pecados são imperdoáveis, comparando a possibilidade de redenção de Tannhäuser à de seu cajado seco florescer novamente.

Desolado, Tannhäuser retorna ao Venusberg, abandonando qualquer esperança de salvação. No entanto, a lenda tem uma reviravolta: após sua partida, o cajado do Papa milagrosamente floresce, simbolizando o poder do arrependimento e a graça divina. Os mensageiros são enviados para encontrá-lo, mas ele já havia desaparecido. A lenda, portanto, aborda temas profundos sobre o poder do arrependimento, a severidade do julgamento divino e a possibilidade de redenção mesmo para os pecadores mais desesperados.

A figura de Tannhäuser está intimamente ligada ao arquétipo do herói errante, uma constante na mitologia germânica. Assim como os heróis das sagas nórdicas e germânicas que enfrentam desafios sobrenaturais e retornam transformados, Tannhäuser passa por uma jornada de queda e redenção. Ele simboliza o homem moderno, dividido entre a realização de seus desejos terrenos e a aspiração por uma vida de virtude e espiritualidade.

O Concurso de Trovadores em Wartburg

O “Sängerkrieg auf der Wartburg” ou Torneio de Canto no Wartburg é outra peça fundamental da trama de “Tannhäuser”. Este torneio é uma competição de poesia e canto que, segundo a tradição, teria ocorrido no castelo de Wartburg, na Turíngia, por volta do início do século XIII. A competição simbolizava o auge cultural da corte de Hermann I, Conde da Turíngia, que era um grande patrono das artes e da literatura.

Na tradição histórica do Sängerkrieg, os Minnesänger, ou cantores do amor cortês, competiam por favores e prestígio. Trovadores renomados como Wolfram von Eschenbach e Walther von der Vogelweide eram convidados a participar de uma disputa artística, recitando poemas e canções que exaltavam temas como o amor cortês e as virtudes cavaleirescas. Em “Tannhäuser”, Wagner transforma esse evento histórico-literário em um cenário dramático onde a música serve não apenas como entretenimento, mas como um campo de batalha ideológico. Os trovadores debatem sobre a natureza do amor: Tannhäuser defende o amor carnal, enquanto seus concorrentes exaltam um amor idealizado e espiritual.

A integração desse torneio na ópera permite a Wagner explorar a tensão entre dois mundos opostos: o profano, representado por Tannhäuser, e o sagrado, simbolizado por personagens como Wolfram e Elisabeth. Wagner eleva essa tradição ao transformá-la em um campo de batalha moral e espiritual, onde as palavras e canções são tanto armas quanto expressões da alma. O Wartburg torna-se um microcosmo onde esses conflitos se desenrolam, com a música e a poesia como veículos para expressar profundas convicções filosóficas e emocionais.

INSPIRAÇÕES COMPLEMENTARES

O Venusberg, onde Tannhäuser encontra Vênus, é uma adaptação das lendas germânicas sobre as Montanhas Hörselberg, vistas como locais de tentação e portais para o reino sobrenatural. Wagner transforma esse cenário em um poderoso símbolo operístico, refletindo o conflito interno de Tannhäuser entre a sedução dos prazeres terrenos e a necessidade de redenção espiritual. Vênus, uma deusa do panteão romano, representa o paganismo, que se contrapõe ao cristianismo, tema recorrente na Idade Média. A luta de Tannhäuser para se libertar da influência de Vênus e buscar o perdão divino espelha o processo histórico da cristianização das regiões germânicas e as tensões culturais resultantes.

Elisabeth, com seu nome evocativo de Santa Isabel, simboliza a pureza e a compaixão cristã. Sua intercessão por Tannhäuser, oferecendo-se como uma figura redentora, destaca a crença na possibilidade de redenção através da fé e do sacrifício. Essa dinâmica entre Elisabeth e Vênus reflete o conflito entre o amor espiritual e o desejo carnal, temas centrais na ópera.

Wagner também foi influenciado por “Parzival”, de Wolfram von Eschenbach, que explora a busca por redenção espiritual, paralela à jornada de Tannhäuser. Ao combinar esses elementos, Wagner construiu uma narrativa rica em simbolismo, mesclando mitologia e cristianismo, e explorando os dilemas humanos universais de amor, pecado e redenção.

Ao combinar essas várias fontes, Wagner criou uma obra que não apenas reflete as tradições medievais alemãs, mas também explora temas universais de amor, pecado e redenção, inseridos no contexto de sua própria visão artística e filosófica.

Assista a ópera, encenada pela Staatsoper Unter den Linden Berlin (Ópera Estatal de Berlim) em 1982.

A REVOLUÇÃO OPERÍSTICA DE WAGNER: O LEGADO DE TANNHÄUSER

“Tannhäuser” de Richard Wagner teve um impacto profundo tanto na época de sua estreia quanto no desenvolvimento subsequente da ópera como gênero. Combinando lendas germânicas e temas filosóficos, Wagner elevou a ópera a um novo nível de complexidade e profundidade. O uso inovador de ‘leitmotifs’ (tema condutor) e a integração de múltiplas formas de arte criaram uma experiência única, consolidando a peça como uma obra essencial no repertório operístico.

Explorando temas universais como a redenção e o conflito entre o sagrado e o profano, a obra ressoou profundamente com o público de sua época e continua relevante até hoje. “Tannhäuser” não apenas representa as aspirações artísticas de Wagner, mas também reflete os dilemas espirituais e culturais que transcendem gerações.

A narrativa do trovador em busca de redenção, ambientada no cenário histórico e lendário do Wartburg, convida o público a uma reflexão atemporal. A tensão entre desejo e virtude, condenação e esperança, é explorada com profundidade em uma obra que homenageia as tradições medievais enquanto aborda questões humanas universais.

Assim como o bastão do Papa milagrosamente floresceu na história, “Tannhäuser” nos lembra que, por mais distante que pareça, a redenção é sempre uma possibilidade real. A ópera transcende os limites do gênero, conectando a mitologia germânica ao romantismo do século XIX e às questões morais e espirituais da condição humana.

Clay Schulze (@clay.schulze) é Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino Liederkranz do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau

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