Por Márcia Pontes, Especialista em Trânsito
A Semana Nacional do Trânsito, “comemorada” a cada ano entre os dias 18 e 25 de setembro e instituída desde 1998, data em que entrou em vigor a última versão do CTB, não é tão recente assim. Já em 1958 tinha sido instituída a Campanha Nacional Educativa de Trânsito e o dia 25 de setembro escolhido como o “Dia do Trânsito”, por meio do Decreto Federal nº 45.064/58.
Mais antiga ainda, a Lei 5.108/66, que antecedeu o CTB, determinava em seu artigo 124 que, pelo menos, uma vez por ano, o Contran fizesse uma campanha educativa de trânsito em todo o território nacional, com a cooperação de todos os órgãos competentes do Sistema Nacional de Trânsito. Também na Semana Nacional do Trânsito, poucos sabem, mas também comemoram, por tabela, o nascimento do Código de Trânsito Brasileiro, no dia 23 de setembro de 1997.
A questão é: de lá para cá, o que há de novo em cada edição da Semana Nacional do Trânsito? Os temas escolhidos pelo Contran? Que ações estamos realizando ao longo de todo o ano? Quais os seus resultados efetivos e como eles impactam a vida das pessoas?
Palestras nas escolas, dramatização, pintura, concurso de redação, teatro de sombras, exposição de viaturas, desfiles, caminhadas, debates e outras atividades a cada ano em todo o país só renovam o entendimento generalizado de que trata-se de uma semana para se realizar o máximo de ações possíveis. E assim, na semana de 18 a 25 de setembro todos se dedicam a promover ações sob o discurso de “reduzir” acidentes, feridos e mortos. E eis que pergunto: qual seria o número aceitável de mortos no trânsito, já que queremos reduzir os acidentes e óbitos em vez de prevenir e evitar que eles sejam provocados? Ou será que não confiamos tanto assim em nossas ações e já estamos prevendo uma quantidade aceitável de mortes?
Dez mortos a menos? Vinte mortos a menos? E se colocássemos esses mortos todos enfileirados e fossem pessoas da sua família ou da família dos gestores do trânsito no país, será que eles continuariam pensando em redução em vez de acidente e morte zero? Assistam o vídeo e reflitam: https://www.youtube.com/watch?v=lFczabVhtbs.
Não deveria ser a Semana Nacional do Trânsito o único momento em que todos fazem questão de demonstrar o seu compromisso com a causa humanitária em defesa da vida, já que o artigo 74 do CTB determina que seja dever prioritário de todos os componentes do Sistema Nacional de Trânsito o ano todo. Seria, então, esta semana, um momento de fazermos um grande balanço e refletirmos com toda a sociedade se o que estamos fazendo ao longo do ano está dando resultados. Mas, bem sabemos, não é assim.
A cada ano, o CONTRAN estabelece o tema da Semana Nacional de Trânsito no país, de acordo com o artigo 75 do CTB. Este ano, inspirado no tema do Maio Amarelo 2016 (Eu sou + 1 por um trânsito + humano) o Contran escolheu: “Década Mundial de Ações para a Segurança no trânsito – 2011/2020: Eu sou + 1 por um trânsito + seguro”.
A temporalidade é um equívoco
Um dos grandes equívocos de se pensar a problemática da epidemia de mais de 50 mil mortos e quase 1 milhão de feridos e sequelados no trânsito do nosso país é a temporalidade, estabelecendo décadas e semanas como prazo para se obter algum resultado voltado à redução da acidentalidade. Deveríamos estar preocupados com isso todos os dias, em nossos comportamentos, ações, condutas e práticas, iniciando por nós mesmos os autocuidados necessários para zerar acidentes no âmbito individual, de nossas próprias famílias, na nossa rua, bairro, cidade, estado e país.
A Semana Nacional do Trânsito deveria ser um período em que avaliássemos o que estamos fazendo o ano todo e se isso está dando resultado para que possamos melhorar o que está dando certo e repensarmos novas estratégias para que o que precisa ser feito com urgência.
Mais uma vez o grande equívoco tem sido: temos que correr para organizar a agenda da semana do trânsito, decorar tudo e chamar a imprensa. No restante do ano a agenda e o discurso inflamado praticamente ficam de lado. Quem é do trânsito e vive a causa de dentro para fora não se contenta com ações superficiais e nem foge do debate sério com a sociedade sobre o tema. Preencher agenda de atividades simbólicas não nos cabe, não nos basta e não é o suficiente.
Temos de nos questionar que tipo de trânsito temos, que tipo de trânsito queremos e começarmos a trabalhar sério o ano todo para que isto aconteça.
O que realmente muda as coisas no trânsito é o comportamento seguro. É o pedestre que deixa de se arriscar em meio aos carros e começa a atravessar na faixa; é o motorista que alivia o pé no acelerador e passa a dirigir a velocidades que lhe proporcionam condições de se antecipar aos riscos da via e a evitar o acidente; é abraçar a causa do trânsito em nível de gestão e dar prioridade às ações globais, institucionais e comunitárias para ações de humanização. É levar informação à população para que ela conheça as leis de trânsito que precisa respeitar em uma linguagem acessível, sem juridiquês e sem mimimi.
Antes de se atribuir unicamente a cada cidadão a responsabilidade ou a culpa temos de lembrar que temos uma Política Nacional de Trânsito, um Programa Nacional de Trânsito e que os municípios integram o Sistema Nacional de Trânsito, cabendo, por dever de ofício, priorizar as ações em defesa da vida dentro de ações e projetos coordenados e consistentes. As responsabilidades são compartilhadas no trânsito e na sua gestão.
Os temas ainda são tratados de forma leve, morna, sempre pisando em ovos para não tocar na ferida aberta ou para não causar melindres aos que abusam da velocidade sabendo que abusam e choramingam a indústria da multa. Para, evitar o “Deus me livre” de falar que em Blumenau se incentiva e muito o consumo de bebidas alcoólicas sem a mesma importância e visibilidade com que se incentiva as práticas seguras no trânsito. Tampouco, associar em algum momento a evidência de que as festas etílicas têm impacto na quantidade e na gravidade dos acidentes de trânsito em nossa cidade quando todos sabemos que sim.
Sempre que se levanta um tema melindroso alguém vem correndo abafar porque não pega bem, porque não repercute positivamente, porque esse ou aquele fala demais, e por aí vai. E assim, vai-se botando panos quentes o ano todo, fazendo de conta que diariamente as pessoas não abusam da velocidade, não bebem e dirigem, não provocam acidentes que poderiam ser evitados e não colocam a própria vida e a dos outros em risco. Sinceramente, o que menos deveria importar são as mais de 400 infrações previstas no CTB, mas sim, as suas consequências. E assim, todos os dias juntamos corpos feridos do asfalto, das ribanceiras, atirados contra postes, muros e cercas.
Capotamento na Via Expressa não deveria ser tratado como só mais um. Acidente de trânsito não deveria ser mais um, assim como os bêbados que assumem o volante e colocam à todos em risco.
Nesta Semana Nacional do Trânsito não estarei em Blumenau. Sigo para o estado do Espírito Santo a convite do governo daquele estado por meio do Detran para participar como painelista no 1º Seminário Trânsito e Cidadania. O tema? A Humanização do Trânsito como Vetor de Indução para Prevenção, Zero Acidentes e Aumento da Segurança Viária. Comportamento, senhores. Porque trânsito é comportamento e comportamentos podem ser mudados com os devidos estímulos.
Lembram daquelas Diretrizes de um Programa de Humanização do Trânsito feito para Blumenau que foi tema de minha especialização e vencedor em duas categorias no Prêmio Fenabrave de 2015? Pois é, continua rendendo frutos pelo país, sendo adotado por municípios brasileiros e ainda ignorado em Blumenau, a cidade para o qual foi feito. Também é sobre ele que falarei em Vitória (ES).
Mesmo longe, espero que as coisas sejam diferentes por aqui nesta Semana Nacional do Trânsito e realmente façamos um balanço do quanto gastamos com acidentes e o quanto investimos; que se tracem as metas e os planos de ação para as ações efetivas, estruturais e sistêmicas. Que tratem da necessidade do Projeto Político Pedagógico da Escola Pública de Trânsito (atrasado que chega), da qualificação dos profissionais, do alinhamento de estratégias para se trabalhar com a população a prevenção e o estímulo à mudança de comportamentos, e de tudo o mais que necessita ser feito além de ações simbólicas e midiáticas. Que comecem a pensar as ações e os projetos locais para resolver os problemas da nossa realidade cotidiana.
Caso contrário, se continuará perpetuando o conceito e o pensamento de que a Semana Nacional do Trânsito seja sinônimo de comemoração e não de trabalho sério e de avaliação de nossa (in)atividade diante de um problema diário que começa a se naturalizar e ser considerado aceitável o ano inteiro.
Trânsito é coisa séria, não pode ficar em segundo plano e não se limita à construir obras estruturais como pontes e viadutos. Incrível que mesmo em época de eleição, sempre de olho na proposta dos candidatos, tão pouco se fale de seus projetos para o trânsito e a mobilidade humana com foco na humanização. Aliás, o tema é melindroso e pode tirar votos (ou arrebanhar votos) dependendo do tom e de como se fala aquilo que as pessoas querem ouvir.
O fato é que não basta sair por aí repetindo que se é mais um por um trânsito mais seguro se segurança no trânsito não for prioridade e se não sairmos do campo do objeto discursivo. É preciso que se comece a responder a pergunta: estou dando o meu melhor? Estou fazendo tudo o que posso para um trânsito mais seguro e mais humano no âmbito de minhas responsabilidades? Trânsito e humanização é prioridade mesmo ou só mais um gancho para gerar pautas?
E vamos à luta, filhos da Pátria!