Banheiros improvisados, salas apertadas, aulas sob árvores e escolas que desabam sem nunca serem reconstruídas. Esse é o retrato da educação nas terras indígenas de Santa Catarina, segundo lideranças kaingangs, guaranis e xoclengues que participaram de uma audiência pública nesta quinta-feira (8/05/25), na Assembleia Legislativa.
Organizado pela Comissão de Educação e Cultura, o encontro deu espaço para professores, diretores, lideranças comunitárias e representantes de órgãos públicos. A principal reivindicação: uma educação bilíngue, com estrutura digna, valorização dos professores indígenas e respeito às especificidades culturais dos povos originários.
“A escola foi uma das ferramentas que mais feriu a nossa cultura, mas agora estamos nos apropriando dela para reverter esse cenário. O professor indígena é o pilar da terra indígena”, explicou o professor César dos Santos, liderança kaingang.
A situação descrita por Davi Timóteo Martins, do povo guarani, evidencia o abandono: “Tem escola sem banheiro, sem biblioteca, sem ginásio. A gente dá aula embaixo de árvore. Já levamos essas demandas à Secretaria de Educação, mas nunca temos resposta. Daí dizem que somos arruaceiros quando protestamos, mas só queremos educação, merenda e limpeza.”
Casos concretos deram peso às falas. Em José Boiteux, o diretor Abraão Kovi Patté relatou que a escola xoclengue que dirigia desabou em 2014. Desde então, os alunos foram deslocados para a Escola João Bonelli, também com previsão de demolição. “Se vão derrubar, onde nossos alunos vão estudar?”, questionou, pedindo melhorias também na merenda e no transporte escolar.
A professora Vanice Domingos, de Chapecó, chamou atenção para o descompasso entre o calendário escolar estadual e a realidade das comunidades indígenas. Ela afirmou que os municípios, responsáveis pelo transporte, raramente atendem às demandas. “Com o Estado conseguimos algum diálogo, mas com os municípios não há conversa.”
Getúlio Tarcísio Kaingang foi além: “Tive que entrar na Justiça para cursar o doutorado.” Ele propôs que indígenas assumam cargos nas Coordenadorias Regionais de Educação e pediu instalação de laboratórios nas escolas indígenas. “O novo Ensino Médio tem uma série de projetos e laboratórios, mas nas nossas escolas não existe nem isso.”
Eunice Kerexu, coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena Interior Sul (DSEI), afirmou que as escolas indígenas vivem um retrocesso. “Não nos atendem nem conforme o modelo indígena, nem conforme o padrão do Estado. É uma dupla negação.” Ela defendeu que os próprios mestres indígenas sejam responsáveis pela elaboração das provas dos concursos para professores. “Temos doutores, temos técnicos preparados, mas fomos excluídos da elaboração da prova.”
Do Morro dos Cavalos, o professor Kennedy Karaí apontou para a força da resistência. “Apesar de toda essa estrutura falha, temos professores e alunos chegando à faculdade, ao mestrado, ao doutorado. Resistimos mesmo sendo proibidos de dar aula na mata ou na Casa de Reza. Isso é tentativa de extermínio cultural.”
Pela Secretaria de Estado da Educação (SED), o professor indígena e assessor Paulo Márcio Pinheiro reconheceu a gravidade da situação. Informou que está em elaboração um edital específico para contratação temporária de professores indígenas (com validade de dois anos), seguido de concurso público. “No último concurso passaram 13 indígenas, mas a prova não era específica. Primeiro teremos um novo currículo e calendário. Depois, o concurso”, disse.
Sobre a merenda, afirmou que o Estado passará a comprar 30% dos alimentos diretamente de produtores indígenas, pelo sistema Catrapovos. Também prometeu material didático específico para cada etnia, elaborado por professores indígenas com mestrado e doutorado. Em relação à infraestrutura, reconheceu que está “precária mesmo” e relatou que duas licitações para escolas modulares guarani fracassaram. “Estamos buscando alternativas, como locar imóveis temporários dentro das comunidades.”
O jovem professor Arilson Belém, de Entre Rios, fez um alerta com tom de cansaço: “Já vimos essas promessas antes. Nossos mais velhos também reivindicaram e nada mudou. Entendemos que as coisas levam tempo, mas por que em algumas escolas anda e em outras não? É só um sentimento, mas é real.”
Renato Gomes, procurador da República, defendeu a importância de concursos públicos para garantir qualidade na educação indígena. Disse que já vem dialogando com a SED e com a Secretaria de Educação de José Boiteux. “É preciso tornar técnica e impessoal a contratação de professores. Não podemos continuar com decisões políticas para um direito tão essencial.” Ele cogitou judicializar a questão caso não haja avanço e reforçou: “Que os povos indígenas escolham seus melhores profissionais.”
A deputada Luciane Carminatti (PT), presidente da Comissão de Educação, defendeu mais escuta e formação pedagógica. “Falta uma conexão entre o Estado e quem faz a educação acontecer nas aldeias.”
O deputado Marquito (Psol), que propôs e presidiu a audiência, listou encaminhamentos com prazos:
- A garantia de que haverá uma nova licitação para contratação de empresa terceirizada para a limpeza das escolas, mas não por metro quadrado limpo e sim por turnos, de acordo com o funcionamento da escola, ou seja, contrato de 20h ou de 40h, com prazo de cumprimento para outubro de 2025;
- Instituição do Fórum da Educação Indígena, em parceria com a Assembleia Legislativa (sem prazo);
- Audiência com o novo secretário da Educação no prazo de 60 dias, com a presença de representante do MPF, para tratar da compra direta de alimentação escolar pelo sistema Catrapovos;
- Construção da matriz curricular (sem prazo);
- Compatibilizar o Novo Ensino Médio com as especificidades das escolas indígenas;
- Contratação de indígenas para atuarem nas Coordenadorias Regionais de Educação (CREs);
- Concurso público para professor indígena no prazo de um ano;
- Levantamento de todas as unidades escolares em três meses;
- Preparação dos professores indígenas para lidar com alunos especiais;
- Criação de Grupo de Trabalho com os três povos originários.
No fim da audiência, um dado pouco conhecido veio à tona: além dos povos kaingang, guarani e xoclengue, os Xetá — quase dizimados — ainda sobrevivem em Santa Catarina, com presença atual na Aldeia Chapecozinho, em Chapecó.
Com informações de Vitor Santos, da Agência AL