Hoje, quando caminhamos pelas ruas elegantes de Munique, é difícil imaginar que essa cidade — símbolo de prosperidade, tecnologia, arte e tradição bávara — tenha sido palco de uma das experiências revolucionárias mais radicais da história alemã. Conhecida mundialmente pela força de sua economia, pelas grandes indústrias, pela Oktoberfest e pelos palácios que contam séculos de história, Munique exibe uma tranquilidade e um orgulho regional que parecem ter atravessado o tempo intactos.
Mas entre 1918 e 1919, em meio ao colapso do Império Alemão, a Baviera inteira mergulhou em um processo revolucionário que desafiou as estruturas tradicionais de poder. Inspirados pela Revolução Russa, trabalhadores, soldados e intelectuais proclamaram conselhos populares em diversas cidades bávaras — de Munique a Rosenheim, de Augsburg a Nuremberg — com o objetivo de construir uma nova ordem socialista. O movimento culminou, em abril de 1919, com a proclamação da República dos Conselhos da Baviera (Bayerische Räterepublik ou Münchner Räterepublik). Embora tenha durado poucas semanas, essa ousada experiência deixou marcas profundas e encerrou-se de forma trágica, sob fogo cerrado das tropas paramilitares enviadas por Berlim.
O VÁCUO DE PODER APÓS A GRANDE GUERRA
O fim da Primeira Guerra Mundial, em novembro de 1918, deixou a Alemanha em um estado de colapso político e social. O Império Alemão, governado pelo Kaiser Guilherme II, chegou ao fim, dando lugar a um vácuo de poder e a uma profunda crise. A derrota militar, somada às duras condições impostas pelo Tratado de Versalhes que se aproximava, mergulhou o país em um cenário de desespero e incerteza. O império que durante décadas simbolizava força e estabilidade havia ruído — e ninguém sabia ao certo qual seria o futuro da Alemanha.
Nesse cenário, eclodiu a chamada Revolução Alemã de 1918–1919. Em várias regiões, conselhos populares foram estabelecidos — os chamados Räte — que buscavam um novo modelo de governo, com maior participação das massas. Em várias cidades alemãs, incluindo Berlim, Hamburgo e Bremen, esses conselhos se organizaram, desafiando o poder tradicional e pregando mudanças radicais.
Em Munique, o ambiente era particularmente tenso. A Baviera, historicamente conservadora, estava mergulhada em uma crise sem precedentes: inflação galopante, escassez de alimentos, desemprego e uma população cansada das consequências da guerra. Protestos, greves e confrontos políticos tornaram-se frequentes nas ruas. Era um terreno fértil para que ideias revolucionárias ganhassem força — e para que, por um breve momento, se concretizasse a ousada tentativa de criar ali uma república dos conselhos.
O movimento foi liderado por comunistas, socialistas de esquerda, intelectuais e ativistas que viam nos conselhos populares uma alternativa ao modelo parlamentar tradicional — considerado por eles incapaz de atender às necessidades urgentes da população.
A monarquia bávara foi derrubada em 7 de novembro de 1918, o rei Luís III da Baviera fugiu de Munique e, no dia seguinte, o jornalista socialista Kurt Eisner proclamou a Baviera como um Estado livre. Esse foi o início de um processo revolucionário que não se limitou à capital: cidades como Rosenheim, Augsburg, Fürth e Nuremberg também foram tomadas por conselhos de trabalhadores e soldados que buscavam instaurar uma nova ordem política.
Com o país dividido entre social-democratas e revolucionários radicais, a instabilidade crescia. Na Baviera, especialmente, a queda do rei alimentou esperanças de transformações profundas. Mas as diferenças internas entre os próprios revolucionários e a crescente oposição de setores conservadores anunciavam um conflito inevitável.

A REPÚBLICA DOS CONSELHOS DA BAVIERA: UM EXPERIMENTO REVOLUCIONÁRIO
O estopim para a radicalização em Munique foi o assassinato de Kurt Eisner em fevereiro de 1919. Sua morte gerou um vácuo político e acirrou ainda mais os ânimos entre os diversos grupos de esquerda. Em meio ao caos, formaram-se coalizões instáveis de socialistas independentes, comunistas, anarquistas e intelectuais que defendiam a criação de uma república dos conselhos moldada nos moldes soviéticos.
Em 7 de abril de 1919, a República Soviética da Baviera foi oficialmente proclamada. O novo governo defendia a autogestão dos trabalhadores, a socialização da indústria, e o rompimento com as estruturas tradicionais de poder.
Entretanto, o experimento revolucionário durou pouco. A falta de organização, a diversidade de grupos com ideias divergentes e a resistência da população mais conservadora minaram as bases do novo governo. Além disso, o governo central alemão, sediado em Berlim, não estava disposto a permitir a fragmentação do país.
A liderança inicial ficou nas mãos de uma frente heterogênea liderada por Ernst Toller, um poeta e militante socialista pacifista. Durante seu breve governo, propostas idealistas foram feitas, como a criação de universidades populares e a abolição da burocracia tradicional. Contudo, a falta de articulação prática, o despreparo administrativo e o idealismo excessivo enfraqueceram a autoridade da nova república.
Pouco tempo depois, os comunistas liderados por Eugen Leviné assumiram o controle, imprimindo um viés mais radical ao governo. Leviné tentou implementar medidas como a socialização de fábricas e bancos, o confisco de imóveis e o uso de milícias armadas para manter a ordem. No entanto, as ações não encontraram apoio amplo nem entre a população bávara nem dentro da própria esquerda.
Enquanto isso, em outras cidades da Baviera, como Rosenheim, conselhos locais também foram estabelecidos, embora com variações significativas de estrutura e influência. A tentativa de coordenação entre os diferentes núcleos revolucionários fracassou diante das dificuldades logísticas e do avanço das forças contra-revolucionárias.

O FIM VIOLENTO DO MOVIMENTO UTÓPICO
O governo central da recém-formada República de Weimar via o experimento bávaro com preocupação. Em abril e maio de 1919, decidiu intervir. Após algumas semanas de tensão e tentativas frustradas de negociação, tropas regulares e unidades paramilitares conhecidas como Freikorps foram enviadas para esmagar o levante. Em 1º de maio, as tropas começaram a retomar o controle de Munique e, nos dias seguintes, outras cidades da Baviera também foram pacificadas pela força.
O confronto nas ruas foi intenso. Barricadas foram erguidas por militantes revolucionários, mas a superioridade militar dos Freikorps não deixou margem para resistência prolongada.
A repressão foi brutal. Estima-se que mais de duas mil pessoas morreram, entre revolucionários, civis e suspeitos de colaboração. Executaram-se sumariamente líderes, militantes e até professores e estudantes. Eugen Leviné foi capturado e executado em junho. Outros, como Ernst Toller e Erich Mühsam, foram presos. Max Levien conseguiu escapar, refugiando-se na União Soviética — onde acabaria morto anos depois durante os expurgos de Stalin.
Um dos aspectos mais controversos foi o tratamento desigual dado aos envolvidos: enquanto os revolucionários enfrentaram fuzilamentos ou longas penas, o assassino de Kurt Eisner, o conde Anton von Arco auf Valley, teve sua pena de morte comutada e foi libertado em 1924.

O RETORNO À ORDEM: A CONSTITUIÇÃO DE BAMBERG
Após a sangrenta repressão da República dos Conselhos, a Baviera buscou retomar uma aparência de estabilidade institucional. Em meio às ruínas políticas e sociais deixadas pelo conflito, os líderes moderados aceleraram a elaboração de uma nova constituição estadual. O texto foi redigido na cidade de Bamberg, já que Munique ainda estava sob ocupação militar e politicamente instável. Em 14 de agosto de 1919, a Constituição de Bamberg foi assinada, entrando em vigor em setembro daquele ano. Ela reafirmava a Baviera como parte integrante da recém-formada República de Weimar, adotando uma estrutura parlamentar democrática, embora com fortes elementos conservadores e anti centralistas.
A nova constituição também procurava apagar os traços da experiência revolucionária, promovendo uma visão de ordem e continuidade. Embora previsse liberdades civis e alguns direitos sociais, afastava-se completamente das ideias defendidas pelos conselhos operários. Era o encerramento formal de um capítulo turbulento da história bávara e o marco de um novo tempo, ainda cheio de incertezas.
AS MARCAS SILENCIOSAS DE UM PASSADO TURBULENTO
Passado mais de um século, o episódio da República dos Conselhos da Baviera permanece como um fragmento pouco lembrado da história alemã — uma página breve, mas intensa, escrita em meio ao caos e à incerteza. Embora o movimento revolucionário tenha sido rapidamente suprimido, sua memória perdura como símbolo de uma época em que novas ideias disputavam espaço em uma sociedade profundamente abalada pela guerra. Essa experiência, embora fracassada, deixou marcas que ajudaram a moldar a identidade de Munique, cidade que, em vez de se transformar radicalmente, optou por reafirmar suas tradições enquanto se abria para a inovação e o progresso econômico.
Hoje, enquanto Munique é reconhecida por sua estabilidade e riqueza cultural, poucos se recordam de que, por um breve instante, a cidade quase seguiu um rumo muito distinto. Revisitar esse capítulo não é apenas remexer em um passado turbulento, mas compreender as forças e os ideais que, mesmo derrotados, continuam a ecoar em momentos de crise. Essa reflexão ressalta que os caminhos que escolhemos — e os que deixamos para trás — são produtos de decisões complexas e de circunstâncias adversas, que, juntas, moldaram o cenário vibrante e resiliente que conhecemos hoje.
Clay Schulze (@clay.schulze) é Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino Liederkranz do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau
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