Por Clay Schulze (@clay.schulze)
Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau
Muitos países possuem estilos musicais profundamente enraizados em sua cultura e identidade nacional, refletindo aspectos únicos de suas histórias e tradições. Gêneros como o samba no Brasil, o tango na Argentina e o flamenco na Espanha vão além da estética sonora e funcionam como expressões coletivas de suas sociedades, carregando símbolos e emoções que ressoam tanto no nível individual quanto no coletivo.
Segundo Carl Jung, fundador da psicologia analítica, essa ligação entre música e identidade pode ser explicada pelo inconsciente coletivo, um reservatório de imagens e arquétipos herdados dos ancestrais que moldam o comportamento humano. Para Jung, a música atua como uma forma de acesso a essas imagens primordiais, conectando as pessoas com suas raízes culturais mais profundas.
Jung acreditava que o inconsciente coletivo se comunica por meio de símbolos, sonhos e imagens arquetípicas, e a música é uma de suas manifestações mais poderosas. Através de ritmos e melodias, os estilos musicais tradicionais de cada nação não apenas preservam a identidade cultural, mas também evocam emoções universais, que transcendem fronteiras e tempos. Dessa forma, gêneros musicais característicos tornam-se canais de expressão dos arquétipos coletivos de uma cultura, refletindo histórias, mitos e valores que definem o espírito de um povo e reforçam sua conexão com o passado e com a psique coletiva.
Faz parte do imaginário comum, que ao visitar a Oktoberfest em Munique ouviremos música bávara ou música de sopro, Blasmusik, como é chamada. Afinal, além de ser a representação intrínseca da cultura regional, ela se estabeleceu como a trilha sonora de toda festa alemã. Esse arquétipo está carregado de elementos, símbolos dessa cultura. Ao ouvir música bávara você automaticamente se transporta para a Oktoberfest, se conecta com cerveja, bratwurst, schweinshaxe e pessoas com lederhosen e dirndl.
BLASMUSIK vs. PARTYMUSIK
Desde o pós guerra e mais recentemente com a globalização, esses arquétipos regionais têm sofrido impacto com a massificação cultural e a respectiva substituição por uma cultura globalizada, na maioria das vezes, com influência norte-americana. Esse impacto também se observa nas tendas da Oktoberfest Munique.
Com o grande impulso do turismo intercontinental, a festa recebe milhões de turistas. Para se ter uma idéia do volume, em 2024 a Oktoberfest Munique recebeu 6,7 milhões visitantes, sendo 3,6 milhões turistas (conforme o site oficial da festa). Para comparação, em 2023, o Brasil recebeu 5,9 milhões de turistas internacionais, de acordo com a Embratur.
Milhares de turistas visitam Munique para conhecer a festa e nem todos conhecem a língua, a cultura local e muito menos os costumes, tradições e obviamente, a música. Assim, não possuem qualquer tipo de sintonia com as músicas tradicionais tocadas nas tendas. Para animar os ‘forasteiros’, e claro, os jovens, os proprietários de tendas têm contratado bandas com repertório mais eclético e que cantem hits internacionais.
Essa tendência ganhou força no anos 80, com Helmut Högl, e hoje os maiores sucessos nas tendas são praticamente hits internacionais, como: Sweet Caroline (Neil Diamond), Hey Baby (Bruce Channel), Take me Home (John Denver), Angels (Robbie Williams) e sucessos do ABBA, Queen, AC/DC, etc. Claro, a mudança no repertório também é cheia de schlager, que estimulam os jovens locais, com sucessos como: Ich war noch niemals in NY (Udo Jurgens), Brenna tuats guat (Hubert von Goisern), Marmor, Stein uns Eisen bricht (Drafi Deutscher), Viva Colonia (Die Hohner) e sucessos de Wolfgang Petry, Spider Murphy Gang, DJ Oetzi, etc.
Na visão dos músicos, como as tendas estão cheias de turistas, quando tocam seu repertório tradicional o público não reconhece as músicas e automaticamente tem menor agitação, mas ao tocar hits internacionais todos se levantam e cantam junto. Os músicos também reclamam da falta de retorno do público, em especial quando as bandas realizam brindes que pedem resposta do público. De um lado a banda grita ‘Die Krüge’ e aguarda que os visitantes levantem seu caneco e gritem ‘Hoch!’, mas somente os locais respondem ao brinde. O mesmo acontece com o (bem humorado) brinde ‘Prost ihr Säcke!’, de viria com a resposta ‘Prost du Sack!’.
Por outro lado, existem muitos proprietários de tendas mais tradicionalistas que mantêm o formato clássico, como na Oide Wiesn. Nesse espaço, os visitantes experimentam como era a Oktoberfest antigamente, com apresentações de grupos folclóricos e claro, muita blasmusik. A estrutura original do Oide Wiesn foi criada em 2010, como parte das celebrações dos 200 Anos da Oktoberfest, fez tanto sucesso que os organizadores resolveram deixá-la permanente.
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A PIOR BANDA DA OKTOBERFEST DE TODOS OS TEMPOS
A discussão sobre repertório tomou grandes proporções nos últimos anos e ganhou atenção da mídia local. Até mesmo a grande estrela da volksmusik, Heino, não passou livre de críticas ao repertório, em sua recente apresentação na tenda Fischer-Vroni.
Mas o caso com maior ruído aconteceu com a Kapelle Josef Menzl. A banda de Regensburg, conhecida pelo repertório de blasmusik, foi contratada para animar a tenda Bräurosl, de Peter Reichert. Tudo começou em 2022, primeiro ano de Menzl na tenda, quando o repertório da banda causou indignação entre os visitantes. Houve uma onda de reclamações, especialmente críticas (por vezes devastadoras) na internet deixaram claro que nem todos os visitantes da Oktoberfest se identificam com a música tradicional. O público reclamava que a banda não tinha grandes sucessos, os hits internacionais, que fazem sucesso nas outras tendas. O escândalo musical chegou a tal ponto que Reichert foi convocado pela organização para dar explicações.
O novo conceito musical adotado para a tenda limitou Josef Menzl e sua blasmusik durante o dia, do meio dia ao início da noite. E à noite outra banda, de partymusik, assumiria o controle, tocando covers de hits internacionais, entre outras coisas, criando assim um ambiente melhor, conforme pedido pelos visitantes. A decisão gerou ainda mais discussão nas redes sociais na época. Enquanto alguns usuários ficaram felizes com a partymusik à noite, outros acharam uma pena que a música tradicional de sopro tivesse que dar lugar aos modernos sucessos.
A banda por sua vez, usou suas redes sociais para agradecer os fãs e soltar um comunicado e um vídeo, onde se auto-intitulou “Schlechteste Wiesn-Kapelle aller Zeiten” (a pior banda da Oktoberfest de todos os tempos). Uma resposta bem humorada após reclamações de seu repertório de blasmusik. Segue o comunicado, com tradução livre abaixo:
AUFRUF AN ALLE BLASMUSIK FANS
Liebe Fans der Kapelle Josef Menzl:
Wir Stehen gerade auf dem Oktoberfest auf dem gleichen Scheitelpunkt wie im Jahr 2009, als man sich in Straubing die Frage stellte, ob eine Blaskapelle am Abend in einem großen Zelt bestehen kann. Jeder kennt das Ende der Geschichte und wir Verdanken es natürlich EUCH !!
Mit der Suche nach einem neuen Wirt für den Donisl und der Bräurosl hat sich die Brauerei aus zahlreichen Bewerbungen für Peter Reichert entschieden – einem Wirt, der für seine traditionellen Werte bekannt ist und auch für die Bräurosl ein traditionelles Konzept vorgelegt hat.
Wir wurden mit unserer Musik, die auf Volksfesten wie Straubing, Karpfham, aber auch von Festivals wie der Brass Wiesn oder dem Woodstock der Blasmusik bereits sehr erfolgreich ist, beauftragt.
Und nach dem ersten Wochenende müssen wir sagen, das haben wir uns alle – die Gäste und auch wir – anders vorgestellt. Vielleicht wurde das Konzept nicht deutlich genug kommuniziert, vielleicht gab es andere Erwartungen was wer unter Stimmung versteht. Das Ergebnis sind schlechte Bewertungen und man kann sogar sagen ein Shitstorm.
Wir Wissen, dass wir unser Bestes geben und was gerade passiert trifft uns ins Herz. Ihr – unsere Fans – kennt uns und unsere Musik und steht hinter uns.
Lasst uns gemeinsam zeigen, wie man auch ohne „Layla” und mit Blasmusik richtig feiern kann! Und dass wir die Kapelle Josef Menzl auch ein Wiesnzelt rocken.
Der Schlüssel ist der unreservierte Bereich – Er muss voll mit Blasmusik-Fans werden.
Wir brauchen jetzt die Unterstützung von Euch: Den Fans der Blasmusik, den Musikvereinen in Deutschland, Österreich, Südtirol, der Schweiz, den großen Festivals wie der Brass Wiesen oder dem Woodstock der Blasmusik. Teilt diese Nachricht, kommt zu uns ins Zelt, nehmt Eure Freunde, Kinder, Omas und Opas mit und gebt der Blasmusik auf einem großen Zelt auf der Wiesn eine Chance.
Bitte teilt und liked diesen Beitrag, ohne Euch geht es nicht, wir brauchen Euch. Kommt vorbei und macht die Hütte voll!
Eure Kapelle Josef Menzl
CHAMADO A TODOS OS FÃS DE BLASMUSIK (Música de sopro)
Queridos fãs da Kapelle Josef Menzl:
Estamos atualmente na Oktoberfest em um ponto crucial semelhante ao de 2009, quando, em Straubing, nos perguntamos se uma banda de Blasmusik poderia se sustentar à noite em uma grande tenda. Todos conhecem o desfecho dessa história, e isso devemos, é claro, a VOCÊS!!
Com a busca por um novo dono para o Donisl e o Bräurosl, a cervejaria escolheu Peter Reichert entre várias candidaturas – um anfitrião conhecido por seus valores tradicionais, que também apresentou um conceito tradicional para o Bräurosl.
Nós fomos encarregados de trazer nossa música, que já é muito bem-sucedida em festas populares como as de Straubing, Karpfham, e até em festivais como o Brass Wiesn ou o Woodstock der Blasmusik.
Após o primeiro fim de semana, devemos dizer que todos – tanto os convidados quanto nós – esperávamos algo diferente. Talvez o conceito não tenha sido comunicado com clareza suficiente, ou talvez houvesse expectativas diferentes sobre o que cada um entende como “ambiente”. O resultado foram críticas negativas, e pode-se até dizer que enfrentamos uma onda de comentários hostis.
Sabemos que estamos dando o nosso melhor e o que está acontecendo agora nos atinge profundamente. Vocês – nossos fãs – nos conhecem e conhecem nossa música, e estão ao nosso lado.
Vamos juntos mostrar como se pode comemorar com Blasmusik, sem precisar de “Layla”! E que a Kapelle Josef Menzl também pode fazer a tenda da Oktoberfest vibrar.
A chave é a área sem reservas – ela precisa estar cheia de fãs da música de sopro.
Agora precisamos do apoio de vocês: os fãs de Blasmusik, as associações musicais da Alemanha, Áustria, Tirol do Sul, Suíça, os grandes festivais como o Brass Wiesn ou o Woodstock der Blasmusik. Compartilhem esta mensagem, venham ao nosso encontro na tenda, tragam seus amigos, filhos, avós e deem à música de sopro uma chance em uma grande tenda da Oktoberfest.
Por favor, compartilhem e curtam esta publicação, sem vocês não conseguiremos. Precisamos de vocês. Venham e encham a tenda!
Sua Kapelle Josef Menzl
Claro que houve uma reação, e os fãs de blasmusik e da Menzl, reagiram e deixaram inúmeras mensagens na internet e, nos dias seguintes, fãs de blasmusik de toda a Alemanha vieram e encheram a tenda. Além de confeccionarem bottons, várias faixas de apoio à banda foram colocadas na tenda, com o dizer ‘Support Menzl’. Existe até hoje uma página dedicada aos apoiadores do Menzl no Instagram.
Por fim, a mistura de blasmusik durante o dia e partymusik à noite provou ser um sucesso, segundo a administração da tenda e da Oktoberfest. Mas já na abertura da festa em 2023, a organização chamou a imprensa e reforçou que este formato seria mantido, para evitar qualquer tipo de ruído. Em 2024, a Kapelle Josef Menzl não tocou mais na tenda Bräurosl, alegando agenda cheia.