Por Márcia Pontes | Especialista em trânsito
Sim. O México reduziu pela metade a quantidade de vítimas fatais de condutores embriagados e também vem evitando os acidentes em potencial caso esses condutores continuassem dirigindo. Em terras mexicanas a tolerância ao consumo de bebidas alcoólicas é de 0,40 para condutores habilitados em veículos particulares, o que seria a categoria A e B no Brasil, e tolerância zero para quem exerce a direção como atividade remunerada ou dirige veículos de transporte coletivo.
Fez o teste do alcoolímetro e deu mais que 0,40 o cidadão não é autuado, não sofre sanções administrativas ou penais, não paga nenhuma multa, mas é levado à presença de um juiz que oficializa a sua detenção e recolhimento a uma cela popularmente conhecida como “Torito” pelo período de 20 a 36 horas. Passado o porre o condutor é liberado. Nem os turistas escapam. O objetivo é retirar o motorista embriagado de circulação e proteger a sua própria vida, a de seus passageiros e a dos demais usuários das vias mexicanas.
Confesso que a apresentação do programa “Conduce sin Alcohol”, no Centro Internacional de Formação de Atores Locais para a América Latina (CIFAL), no primeiro dia de agosto, pelo policial e médico mexicano dr. Othon Sanchéz (à direita, de terno claro na foto), foi uma das exposições mais esperadas por mim. O Cifal é vinculado ao Unitar (United Nations Institute for Training and Research), que é o braço da ONU 16 países no mundo, destes, quatro na América Latina e o foco é o treinamento em segurança viária para especialistas em trânsito, membros da academia e demais atores ligados à segurança no trânsito.
Afinal, vivendo em uma cidade como Blumenau, reconhecida como a capital nacional da cerveja, em que os acidentes envolvendo embriaguez no volante lideram as estatísticas, não têm dia e nem hora para serem provocados e onde as blitz da Lei Seca nunca chegaram, meu interesse foi em conhecer a estratégia mexicana e em que a cidade poderia se inspirar para frear os índices de acidentalidade, mortos e feridos no município. Só que uma coisa temos de admitir: os mexicanos estão muito melhor preparados e equipados do que nós, blumenauenses, em tudo! Seja no amparo legal, na quantidade de efetivo para as fiscalizações, nos tipos de prisões que abrigam os condutores flagrados dirigindo bêbados e na mentalidade da população: eles colocam a vida em primeiro lugar e não avisam os locais de fiscalização em rede social.
Sem multas ou sanções penais
No Brasil funciona assim: o motorista que cai na blitz da Lei Seca ou na fiscalização de rotina com suspeitas de embriaguez é convidado a fazer o teste de etilômetro, o que os mexicanos chamam de alcoolímetro. Caso se recuse é automaticamente autuado pelo art. 165-A do CTB, infração gravíssima, 7 pontos, e a multa multiplicada por 10 (R$ 2.943,70), o documento de habilitação é recolhido e o veículo retido. Se houver um passageiro sóbrio ou alguém que o condutor chame para conduzir o veículo, ele é liberado. Caso contrário, é guinchado ao pátio. O Detran tem até 5 anos para abrir um processo para a suspensão do direito de dirigir.
Se o condutor aceita fazer o teste de etilômetro e acusa 0,34mg/L descontam-se os 0,4 de erro metrológico máximo admitido e aplicam-se as sanções do art. 165 do CTB: as mesmas descritas acima só que pelo art. 165 (infração administrativa por dirigir sob a influência de álcool ou substância que determine dependência), o condutor é levado à delegacia e autuado pelo delegado em serviço pelo art. 306 do CTB (crime de trânsito): detenção, de 6 meses a 3 anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Como cabe fiança, geralmente o condutor paga e sai pela porta da frente da delegacia antes mesmo de os agentes de trânsito ou policiais militares terminarem as tarefas burocráticas da ocorrência.
No México é diferente: o Programa Dirigir sem Álcool existe desde 2003, tem proteção jurídica e é aclamado pela população que quer ver os motoristas embriagados afastados das ruas: 98% das pessoas em todo o México já ouviram falar do Programa Conduzir Sem Álcool e 83% o aprovam. Todos os dias cerca de 500 policiais são distribuídos em grupos que atuam em 25 pontos fiscalizando com o etilômetro. Não existe folga ao longo de todo o ano.
A primeira abordagem é feita por mulheres policiais, uma estratégia para que o contato pareça menos intimidador ao motorista. Caso negue-se a fazer o teste do bafômetro mexicano é conduzido a um juiz em seu gabinete que o ouvirá e aplicará a sentença adequada. Se é constatada a alcoolemia o condutor é conduzido a um juiz itinerante que acompanha as operações de fiscalização. Se o passageiro está sóbrio e em condições de dirigir, ele leva o carro; caso contrário, o automóvel é guinchado. Nem os turistas escapam das leis mexicanas anti-embriaguez ao volante.
Independente do estado de embriaguez do condutor ele não paga multa e não responde civil ou penalmente: o juiz itinerante é quem determina quantas horas entre 20 e 36 ele ficará preso em uma cadeia só para motoristas embriagados. Não é cadeia comum e os motoristas não se misturam com detentos ou presidiários. O tratamento só é diferente se o motorista já provocou o acidente ou mortes. Aí vai para a cela comum em vez do “El Torito”.
Enquanto nos Estados Unidos se registrou uma população de 309.160.000 habitantes entre os anos de 2006/2007 e a quantidade de mortos em acidentes de trânsito era de 42.003, o Brasil com 191.790.929 habitantes registrou 35 mil mortos nos anos de 2006/2007. Já no México, um país em que se começa a ingerir bebidas alcoólicas desde muito cedo segundo o dr. Othon Sanchéz, entre a população de 105.534.880 registrou-se no mesmo período 17.003 mortes em acidentes de trânsito, incluindo as causadas por embriaguez ao volante.
Enquanto no Brasil basta que o agente manobre a viatura para as redes sociais bombarem avisando os locais de possíveis blitz, no México 95% da população não avisa as outras pessoas onde estão as fiscalizações do alcoolímetro. No México, as autoridades estimam que 60% dos acidentes e mortes sejam provocados por motoristas sob a influência de álcool.
Popular e inconstitucional
Em sua exposição o dr. Othon Sanchéz fez questão de ressaltar: o Programa Conduzir Sem Álcool seria chamado de inconstitucional pelos brasileiros por impedir o direito de ir e vir do motorista, mesmo estando alcoolizado e colocando à todos os cidadãos em risco. Ao que devo concordar: o que não ia faltar era trabalho para os advogados brasileiros tirados da cama na madrugada para interpelar pelo direito de ir e vir de seu cliente embriagado ao volante. Reforçariam que o cliente não fez mal a ninguém, não provocou acidente, não feriu, não machucou e nem colidiu destruindo o patrimônio público. O clamor por ingerência e arbitrariedade seria massivo enquanto que no México o programa tem medida cautelar (evitar que o acidente seja provocado) e tutelar (cuidar do motorista bêbado até que o porre passe).
Ocorre que tudo o que fazemos de constitucional no Brasil em relação ao álcool e direção não está conseguindo frear as mortes, as sequelas e os acidentes de trânsito. Não põe fim às tragédias e à dor tremenda de quem perde alguém pelas mãos de um bêbado ao volante. No México a ordem das coisas foi repensada e milhares de acidentes e mortes estão sendo evitados pela medida simples de tirar o motorista alcoolizado do volante antes que ele cometa uma desgraça em via pública.
É claro que a plataforma cultural voltada para a segurança no trânsito também conta mesmo no país em que cerca de 60% dos acidentes são por embriagados ao volante e se consome muita tequila desde muito cedo.
No México inteiro a população acolhe, protege e defende o Programa Dirigir Sem Álcool. Aguardam por ele todos os dias e não saem por aí em rede social ou por qualquer outro meio avisando os locais de fiscalização. No ano em que os policiais tiveram folga na noite de Natal e na noite de Ano Novo os mexicanos foram às ruas, procuraram o rádio, a TV e os outros meios de comunicação exigindo a presença dos policiais nas ruas para identificar e recolher ao “Torito” os condutores embriagados.
Essa talvez seja a diferença mais marcante entre mexicanos e brasileiros: a vida é o bem maior a ser tutelado, o direito fundamental sagrado que está acima de qualquer outra lei existente. Lá, no México, a população e as autoridades entendem que só tirando o condutor embriagado do volante, afastando-o das ruas e encaminhando-o para curar o porre numa prisão específica é que se vai evitar mortes, feridos, acidentes e tragédias. É uma forma de coibir até a impunidade ao se cortar o mal pela raiz.
Lá, no México, o turista visita, é bem recebido, mas se está bêbado ao volante vai para o Torito como qualquer cidadão mexicano. Não tem essa mentalidade de que se eu faço uma festa e sirvo bebida alcoólica para o meu convidado não posso puni-lo na saída.
Por lá, no México, tem-se carregado menos alças de caixão, o sistema de saúde não impacta com os atendimentos a acidentados de trânsito e as pessoas que adoecem de causas naturais não perdem o atendimento, a vaga, o leito hospitalar e as cirurgias para acidentados de trânsito.
Por aqui, as coisas são diferentes. Muito diferentes. Ainda mais porque qualquer outro motivo ou prioridade tem sido maior do que proteger a vida das pessoas e tirar os motoristas embriagados de cena.
Por aqui não é mais a indústria têxtil que movimenta a economia, mas sim, o próprio álcool e não se tem um Plano de Prevenção de Acidentes como se tem para as enchentes e outros desastres naturais, nem efetivo para fiscalizar, nem etilômetro que chega e nem boa vontade para se resolver o problema.
E viva El México!