Palavra: arquétipos e representações

Prof. Dermes

Queridos leitores, seguem abaixo algumas reflexões a respeito da palavra (ou de sua ausência), a respeito das quais os convido a meditar não no sentido literal de cada uma delas, mas em toda sua riqueza arquetípica, simbólica, representativa.
Boa leitura!

De acordo com a sabedoria popular, a língua é um instrumento tão perigoso que Deus a colocou atrás dos dentes e dos lábios para o homem pensar duas vezes antes de usá-la. Todavia, sempre dizemos algo de que nos arrependemos depois. E mais: ouvimos constantemente grosserias ou palavras que abalam nossa auto-estima. Nessas ocasiões, por mais dolorosas que sejam, é preciso respirar fundo e considerar o estado de espírito do interlocutor (nervosismo, raiva, inveja). Provavelmente, mais tarde, ele se arrependerá do que disse. O importante é você se preservar e não permitir que a mente martele o insulto recebido. Saiba peneirar as críticas construtivas e jogue fora os escolhos. Além disso, lembre-se: perdoar faz muito bem à saúde, nos torna mais leves.

Segundo a tradição greco-romana, o valente Odisseu teria enfrentado o gigante Polifemo com um estratagema peculiar. Primeiro conversou com ele e disse chamar-se Ninguém, enquanto o embebedava. Depois feriu seu único olho. Os demais gigantes, ao ouvirem os gritos de Polifemo dizendo-se ferido, perguntavam quem fora o autor da façanha. Ao que ele respondia “Ninguém!”. Os amigos, considerando-o bêbado, não se ocupavam em socorrê-lo ou mesmo em procurar o tal de… Ninguém.

Conta-se que um sultão, traído pela esposa, resolveu casar-se todos os dias com uma mulher diferente e, após a consumação das núpcias, assassiná-la. Sherazade, uma jovem culta e inteligente, pediu para ser apresentada ao sultão, que se apaixonou por ela e com ela se casou. Na noite de núpcias, Sherazade começou a contar ao rei uma história muito curiosa. Contudo, ao amanhecer, no momento em que deveria ser morta, a narrativa chegava ao ponto mais interessante. Então, o sultão resolveu lhe dar mais um dia de vida. A estratégia de Sherazade surtiu efeito e, após mil e uma noites de amor e histórias, o sultão revogou a lei cruel e resolveu assumir seu amor pela jovem contadora de histórias. Exemplo consagrado da vitória da pena sobre a espada, da força criadora da palavra sobre a força bruto, do amor sobre o ódio e o ressentimento.

Na tradição hebraico-cristã, segundo o Antigo Testamento, a criação do mundo se dá por meio da palavra de Deus (o fiat ou faça-se registrado no livro do Gênesis). Ainda conforme o Antigo Testamento, Adão é autorizado por Deus a nomear seres e coisas, o que o torna co-autor da criação. Já no Novo Testamento, nas palavras de João e na interpretação tradicional das Escritoras, o Jesus é o Verbo feito carne, o Logos. Outro episódio significativo é o do centurião que pede a Jesus a cura de um criado e, ao saber que o próprio Mestre iria a sua casa, responde, de acordo com as palavras de Mateus: “Senhor, eu não sou digno de que entres sob o meu teto; dize-me somente uma palavra e meu servo será curado.”

Na tradição iorubá, Ogum havia partido para uma de tantas guerras das quais voltava vitorioso. Chegou a Irê, sua cidade, faminto e com sede, contudo ninguém parecia notar sua presença, falando com ele ou mesmo olhando em seus olhos. A cidade toda guardava silêncio ritual, mas Ogum não se deu conta disso. Sentindo-se ofendido, sacou sua espada e cortou a cabeça dos filhos de seu próprio povo.

Quando o período de silêncio terminou, o filho de Ogum e súditos que sobreviveram à matança vieram prestar-lhe homenagens. Ogum, então, se deu conta do engano e não se deu mais sossego. Achando que não podia mais ser rei, cravou sua espada no chão, que se abriu e o engoliu. Ogum foi para o Orum e, assim, tornou-se Orixá.

 

Ademir Barbosa Júnior (Prof. Dermes) é professor de Literatura, Redação e Interpretação de Textos. É Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde também se graduou em Letras. Desde 1991 leciona do Fundamental à Pós-graduação e compõe bancas de diversos processos seletivos, tendo passado pela Fuvest, pelo ENEM, dentre outros.

Autor com mais de 70 livros e 38 revistas especializadas publicados no Brasil e em Portugal e com traduções para diversos idiomas, é apaixonado pelo que faz. Contatos: ademirbarbosajunior@yahoo.com.br