Por Urda Alice Klueger, Escritora, historiadora e doutora em Geografia
Ninguém sabe de onde ele veio. Um carro dirigido por uma mulher chegou em surdina até esta enseada e jogou-o fora – provavelmente jogou-o no mar para que se afogasse, pois quando começou a ser visto estava todo molhado. Ainda estava molhado quando chegou a minha vez de vê-lo: um montinho de pelos pretos contendo ossos pontiagudos, saltando da pele, assustado, com medo, tremendo de corpo inteiro.
Esta gente daqui é boa para os cachorros – há diversos cachorros de rua, todos de porte grande, vivendo por aqui. Não são surrados, não são desprezados, não vi nenhum menino, até agora, jogar-lhes pedra. Um e outro lhes dá comida, e sempre há sobras de peixe na praia, que garante o seu sustento, sobras essas que agradam sobremaneira ao meu cachorro Atahualpa, que de dondoca de apartamento que vomitava se comesse um marisco promoveu-se rapidamente a cão que traça sem nenhum pejo sobras de rede, com predileção especial pelos peixes podres.
Só que esse é um cachorro miudinho, pequeno, e estava molhado, assustado e tremendo de corpo inteiro – sabe-se lá o que lhe fizeram lá donde veio, sabe-se lá se estava molhado porque a mulher que o trouxe para cá jogou-o no mar e escapou por pura sorte – aqui é uma terra onde todos se conhecem e todos sabem de quem é cada cachorro e cada gato e quem são os cachorros de rua – e ninguém conhecia aquele. Viram a mulher, no entanto, e cobraram dela a maldade, e ela, além de tudo, foi grossa.
Eu segurei seu tremor molhado junto ao coração e no mínimo iria alimentá-lo, e já havia outro bom homem disposto a ficar com ele. Disputamos um pouquinho e o homem o deixou para mim, e o trouxe para casa.
Estava morto de fome. Antes que eu visse, descobriu umas sobras de ração e bolo, na varanda, que estavam ali fazia uns dois dias, cheias de formigas, e devorou aquilo com formigas e tudo. Fui buscar mais ração, um tanto assim para uns dois dias, para um cachorrinho daquele tamanho, e ele devorou tudo de novo. Não dei mais porque já era demais: ele ficou abaulado de tanta comida. Fiquei pensando que passaria mal do estômago quando bebesse a água que já preparara para ele; fiz logo uma caminha macia dentro de uma caixa de papelão, lá na varanda. Ele tomou a água e se ajeitou na caminha – pensei que ele deveria criar algum laço mais afetivo com aquela varanda e fui buscar um osso velho, abandonado há dias por Atahualpa nos fundos da casa. Ele cuidou do osso e dormiu num lençolzinho de borboletas.
Dentro de casa o ciúma grassava com aquele cachorrinho lá na varanda, e fui para o computador com minha gata sentada quase sobre o teclado e Atahualpa não dando a menor folga. Dei uma espiada dissimulada no cachorrinho magro, pequeno e maltratado lá na sua caminha antes de vir para a cama com os meus donos e senhores Atahualpa e Manuelita, que não estão desgrudando de mim, e eles estão há horas ressonando tranquilamente, e cadê eu dormir? Só agorinha entendi: há um cachorrinho lá na varanda, e isto muda toda a ordem das coisas, altera todo o emocional de uma pequena família. Só agora entendi que deveria escrever sobre ele, que é o meu jeito de resolver a vida. São 03:21 h da madrugada e já ouço um galo cantando, e fico pensando que poderia chamar-se Montezuma e no banho morno e carinhoso que preciso dar nele amanhã, e nas sobras que estão na geladeira e que talvez ele coma. Será que aceitará pão com manteiga de manhã?
Pronto, escrevi. Agora acho que vou poder dormir. Montezuma lá na varanda é uma grande e mágica energia que chegou tão inesperadamente que me tirou o sono. Agora que acabei lhe dando um nome, acho que ele vai ter que ficar. Que fazer com mais um cachorrinho além de amá-lo?
Obs.: Hoje, 21.12.2016, faz 13 dias que o cachorrinho faz parte da nossa pequena família. Seu nome acabou sendo Zorrilho, por se parecer muito com uma raposinha.
Enseada de Brito (Palhoça /SC), 08 de dezembro de 2016.
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