Sumaia Villela, da Agência Brasil
É possível estabelecer se uma criança será bem sucedida ou capaz de fazer boas escolhas no futuro? Dois estudos lançados no 6° Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, feito no Recife nesta semana, reuniram informações de mais de 150 estudos científicos, leis e pesquisas para demonstrar que, apesar de não serem fatores únicos, vínculos familiares e ambientes saudáveis são essenciais ainda na primeira infância – que vai até 6 anos – para desenvolver características cerebrais presentes em adultos autônomos e com mais qualidade de vida.
Os estudos Importância dos Vínculos Familiares na Primeira Infância e Funções Executivas e Desenvolvimento da Primeira Infância foram desenvolvidos pelo grupo de especialistas que compõe o Núcleo Ciência pela Infância, organismo formado por várias instituições, entre universidades, organizações da sociedade civil e órgãos de pesquisa. Ambos fazem uma compilação de referências bibliográficas para trazer informações científicas, de forma acessível, aos gestores públicos e à sociedade em geral, para explicar como essa fase da vida é importante e como o Estado pode agir por meio de políticas públicas para garantir o pleno desenvolvimento do potencial dessa novíssima geração.
Os pesquisadores explicam que as funções cerebrais responsáveis por muitas habilidades necessárias na vida são geradas na primeira infância com as funções executivas, um conjunto de três dimensões composto por memória de trabalho, controle inibitório e flexibilidade cognitiva. “O que ajuda a entender é a analogia com o controlador do tráfego aéreo. O nosso funcionamento executivo faz essa função. Ele organiza os aviões que estão chegando, os aviões que estão saindo, só que no nosso caso os aviões são as tarefas, os planejamentos que a gente faz no nosso dia-a-dia”, explica Joana Costa, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Momento de consolidação
É a partir das funções executivas, segundo o estudo, que o ser humano aprende a armazenar e relacionar informações a curto prazo, o que ajuda, por exemplo, a lembrar o que estava fazendo antes de ser interrompido; ter domínio sobre a atenção e o comportamento, como conseguir ler um texto em um ambiente barulhento; e considerar diferentes pontos de vista antes de tomar uma decisão, o que influencia na identificação e correção de erros cometidos. Os circuitos das regiões pré-frontais do cérebro, onde se processam as funções executivas, amadurecem até o início da fase adulta, mas é na primeira infância que os fundamentos são “esculpidos e consolidados em função das experiências da criança”.
Para que esse potencial genético se desenvolva, os pesquisadores apontam ser necessárias interações sociais saudáveis, como explica Beatriz Abuchaim, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC), de São Paulo. “A criança tem uma característica de querer se vincular às pessoas que estão próximas e que cuidam dela. Os adultos, por sua vez, devem responder a essas expressões da criança, a essa necessidade de cuidado, de carinho, de acolhimento. Quando isso não acontece, muitos estudos mostram que há um prejuízo no desenvolvimento posterior. Cognitivo, emocional, físico até”, explica, falando não somente da figura materna, mas de todos que exercem o papel de cuidados do bebê.
Condição social
A desigualdade brasileira é apontada pelos dois estudos como um dos obstáculos para esse desenvolvimento pleno na primeira infância, já que as oportunidades diferentes criadas desde a gestação podem influenciar na construção de vínculos entre a família e impactar no sucesso profissional ou escolar do cidadão, segundo expõem os pesquisadores.
“Estatisticamente, pais e mães em condições físicas, emocionais, sociais ou econômicas desfavoráveis tendem a ter filhos com mais problemas de comportamento, de relacionamento e de desempenho escolar”, explica o texto sobre vínculos familiares, embora destaque que os “fatores de risco devem ser interpretados de forma cuidadosa, a fim de que não se façam associações de causa-efeito precipitadas”, de forma a não se generalizar casos individuais, pois a construção de vínculos é complexa.
O trecho expõe a preocupação, por exemplo, em não se atribuir um determinado comportamento desfavorável, como o baixo rendimento escolar, a uma classe social específica, já que os recursos materiais não são o único fator para se estabelecer um ambiente saudável. “Famílias com maior privação material podem ter dificuldade em construir ou acessar ambientes favoráveis ao desenvolvimento infantil”, diz o compilado sobre funções executivas. “Não obstante, famílias com maior nível socioeconômico também podem ter dificuldades (…) com condições favoráveis ao desenvolvimento infantil. Independentemente do nível de renda, a vivência em ambientes empobrecidos de diálogo e incentivo à aquisição de autonomia prejudica o pleno desenvolvimento das funções executivas”.
Os estudos também indicam a necessidade de quebrar o paradigma de que crianças não podem ter responsabilidades ou não entendem o mundo a sua volta. “A compreensão atual sobre cognição infantil respalda a existência de uma ampla gama de competências presentes desde os primeiros meses de vida, substituindo visões anteriores que subestimavam as capacidades da mente infantil”, diz um trecho. O estímulo à autonomia, dentro das possibilidades de cada fase da vida, precisa vir desde cedo, segundo a compilação do Núcleo Ciência pela Infância sobre funções executivas.
Políticas públicas
Para minimizar as diferenças de oportunidades e construir os vínculos necessários na primeira infância, o texto enfatiza a necessidade de entender o cuidado com as crianças como um dever não só da família, mas do Estado e de toda a sociedade – como preconiza a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o recém-aprovado Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016).
A “promoção da educação de modo geral, permitindo um alto grau de escolaridade aos pais; acesso a serviços públicos de boa qualidade; programas de apoio às famílias; programas de incentivo à amamentação; de apoio à primeira infância e suporte social às famílias por instituições educacionais” são algumas das políticas citadas como necessárias para favorecer as boas relações familiares.
Os trabalhadores da área da saúde e da educação são indicados como elos importantes, segundo o material, tanto para que ajudem os cuidadores a compreender o processo de desenvolvimento infantil para identificar e prevenir condutas e situações que podem não ser saudáveis para a criança. “Uma das coisas que a gente aponta também é a importância do aprimoramento da formação desses profissionais e aí a gente pode incluir os profissionais da assistência social e do direito, para eles estarem sensibilizados a respeito do tema”, diz a pesquisadora Beatriz Abuchaim.
Desafio
O acesso à educação infantil – período pré-escolar que vai até 5 anos de idade – é defendido como um serviço essencial, mas que ainda é um desafio no país. Dados de 2015 do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) usados na compilação mostram que o percentual da população pertencente à primeira infância que frequentava a escola cresceu entre 2004 e 2013, mas ainda não atingiu a meta do Plano Nacional de Educação, que prevê, até 2020, a universalização da pré-escola e a possibilidade de atendimento de 50% das crianças de até 3 anos em creches.
No último ano da série analisada, 81,4% dos brasileiros de 4 a 5 anos estavam na escola, enquanto 23,2% das crianças que tinham até 3 anos frequentavam alguma creche. E os percentuais mudam drasticamente de acordo com o grupo social. “Há uma tendência de que crianças negras, residentes em áreas rurais e pertencentes ao grupo dos 35% mais pobres da população tenham percentuais menores de frequência à educação infantil do que crianças brancas, residentes em áreas urbanas e pertencentes ao grupo dos 25% mais ricos da população”, compara o texto.
Ainda assim, estar na escola não é o suficiente, segundo o Núcleo de Ciência pela Infância. É preciso que as instituições de ensino se aproximem da comunidade. “No Brasil, predominam sérias dificuldades de diálogo entre escola e família, tanto na educação infantil como no ensino fundamental, em diversos contextos sociais”, diz um dos estudos.
Esse fator seria mais “contundente” quando se trata da população socialmente vulnerável. “As famílias tendem a valorizar a unidade, muitas vezes, com escassos elementos para pensar criticamente a respeito do trabalho feito. Por seu turno, profissionais que atuam na educação infantil tendem a desvalorizar as famílias, expressando preconceitos em relação à educação que as crianças recebem no lar”, disse.
O outro texto chama a atenção, ainda, para a falta de evidências empíricas a respeito de iniciativas que procuram promover as funções executivas em crianças e que são necessárias mais pesquisas sobre o tema para “compreender melhor os tipos possíveis de programas para a primeira infância e seus efeitos”, especialmente na realidade brasileira, concluem os pesquisadores.
Edição: Fábio Massalli