Weihenstephan: a história da abadia que se tornou a cervejaria mais antiga do mundo

Na coluna Hallo Heimat, Clay Schulze resgata uma história que começou em 1040 na Bavária.

Foto aérea da Cervejaria Weihenstephan

Localizada na cidade bávara de Freising, a Weihenstephan é considerada a cervejaria mais antiga do mundo ainda em atividade, com quase mil anos de história. Fundada em 1040, a cervejaria Weihenstephan iniciou-se como um mosteiro beneditino, erguido na colina Nährberg, onde monges usavam o conhecimento e o acesso a ingredientes locais para produzir cerveja.

Na Idade Média, onde havia um mosteiro, também havia produção de cerveja. Esse vínculo religioso foi decisivo, pois, em tempos de pouca higiene e técnicas rudimentares, a produção monástica garantiu um padrão de qualidade e segurança que ajudou a estabelecer a reputação da bebida.

A trajetória da Weihenstephan, como abadia e cervejaria, revela uma jornada de fé e persistência até a solidificação de um nome de sucesso mundial.

PRIMEIROS ANOS DA ABADIA EM FREISING

Freising está localizada às margens do rio Isar, cerca de 30 minutos ao norte de Munique. A cidade foi sede do primeiro ducado tribal bávaro (a partir de 555 DC) e ganhou grande importância como sede episcopal desde o início da Idade Média (a partir de 739).

Por volta de 715, o duque Teodão II pediu ao Papa Gregório II que fundasse bispados na Baviera, o que resultou na chegada do bispo beneditino Corbiniano em 724. Na colina de Weihenstephan, ele fundou uma igreja e uma escola. Já existia um santuário próximo na colina, o que tornava o local ideal para o mosteiro.

Assim como em outros mosteiros da Europa, os monges beneditinos começaram a produzir cerveja no local para oferecer aos visitantes e manter-se alertas durante os períodos de jejum. Como a cerveja continha mais nutrientes do que a água, era considerada o substituto perfeito para as refeições dos monges em jejum.

Em 768, registros históricos mostram que um produtor de lúpulo da região pagava dízimos em forma de lúpulo diretamente ao mosteiro, sugerindo que esses lúpulos eram usados na produção de cerveja. Afinal, produzir cerveja faz parte das atividades monásticas. Porém, é muito provável que antes disso os monges já faziam cerveja.

O mosteiro, inicialmente dedicado a São Vito, foi fundado por volta de 811 e 835 pelo bispo Hitto de Freising.

São Corbiniano, pintura de Jan Polack. Museu Diocesano de Freising

HISTÓRIA DE PERSEVERANÇA EM MEIO A CATÁSTROFES

A história da Weihenstephan é marcada por devoção a Deus e muita resiliência, com os monges resistindo a vários desafios pelos séculos, como guerras, incêndios e epidemias.

Em 955, a abadia foi invadida e parcialmente destruido em conflitos com os hunos – sendo logo depois reconstruída. Em 1040, o grande marco, o abade Arnold conseguiu obter os direitos de fabricação e licenciamento de cerveja, inicia-se oficialmente a produção comercial (documentada) da cerveja. Assim, de acordo com o documento emanado pelo bispo Engelberto de Freising, esta cervejaria é a mais antiga ainda em atividade, seguida pela Abadia de Weltenburg, de 1050.

Durante a Idade Média, a Weihenstephan ganhou reputação por sua produção de cervejas de alta qualidade. Nesse período, os monges passaram por inúmeras provações. Entre 1085 e 1463, a abadia foi totalmente consumida por incêndios em quatro ocasiões, enfrentou três epidemias de peste, diversas fomes, um grande terremoto em 1348, além de ser atacado e destruido durante invações.

Gravura da Abadia de Weihenstephan por Michael Wening em Topographia Bavariae, cerca de 1700.

O destino parecia conspirar contra a cervejaria do mosteiro, deixando poucas esperanças de sucesso. Contudo, os monges persistiram e não aceitaram a derrota. A cada destruição, reconstruíam a cervejaria com determinação, aproveitando a oportunidade para refinar suas técnicas de fabricação de cerveja e se fortalecer com cada renascimento.

A partir do século XV, a cervejaria do mosteiro entrou em uma fase de prosperidade, sem enfrentar mais desastres físicos. A produção e a venda de cerveja continuaram a crescer, tanto na comunidade local quanto em outras regiões. No século XVI, sua receita foi ajustada em conformidade com a Reinheitsgebot (Lei da Pureza da Baviera).

A abadia também foi alvo de grandes conflitos como a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e a Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1714), que causaram devastação na região.
Com exceção da igreja da abadia, os demais edifícios do mosteiro foram reconstruídos entre 1674 e 1705.

DA DISSOLUÇÃO MONÁSTICA À EXPANSÃO GLOBAL

Mas o que todas as catástrofes na história milenar do mosteiro não conseguiram realizar foi alcançado com um simples decreto em 24 de março de 1803: sua dissolução. Durante o processo de secularização, todas as propriedades e direitos do mosteiro foram transferidos ao estado da Baviera.

A cervejaria não era mais propriedade dos monges que cuidaram dela com tanto zelo, mas agora sob administração estatal, tornando-se a Königlich Bayerische Staatsbrauerei Weihenstephan (Cervejaria Real Bávara Weihenstephan).

Em 1852, a Weihenstephan foi incorporada à Universidade Técnica de Munique. Essa parceria trouxe inovação e pesquisa científica à produção cervejeira, melhorando a sua qualidade e eficiência.

A cervejaria tornou-se uma empresa do estado bávaro em 1921, e passou a se chamar Bayerische Staatsbrauerei Weihenstephan (Cervejaria Estatal Bávara de Weihenstephan). Ao longo do século XX, expandiu sua produção e ganhou reconhecimento global.

 

Universidade Técnica de Munique

INOVAÇÃO E CIÊNCIA NA COLINA WEIHENSTEPAHN

Mesmo sendo uma cervejaria milenar, a Weihenstephan está longe de ser uma instituição que vive apenas do passado. Desde o século XIX, a cervejaria cultiva uma relação estreita com a ciência, sobretudo com a Universidade Técnica de Munique (TUM), que possui um campus na colina Weihenstephan. Este centro de pesquisa, que inclui estudos de agronomia, biotecnologia e tecnologia de bebidas, integra tradição e inovação, aprimorando o desenvolvimento das cervejas Weihenstephan.

A colaboração com a TUM permite que mestres cervejeiros e estudantes de todo o mundo se especializem na arte da cerveja, combinando o conhecimento ancestral com as tecnologias mais avançadas. Gerhard Beutling, que por anos foi Mestre-Cervejeiro da Eisenbahn, estudou e se formou cervejeiro na TUM entre 1974-76.

OBATZDA: DE INVENÇÃO CASEIRA A IGUARIA TRADICIONAL BÁVARA

No coração da Weihenstephan existe o Bräu-Stüberl, o restaurante da cervejaria. Espaço acolhedor com exelente gastronomia bávara e um belíssimo biergarten, para degustar as cervejas da casa.

Lá nasceu um símbolo da gastronomia bávara: o Obatzda, uma pasta cremosa de queijo com sabor inconfundível. A criação dessa iguaria data de quase um século atrás, quando enfrentaram um dilema: o que fazer com as numerosas peças de queijo Camembert que lotavam sua despensa?

A solução: amassar o Camembert maduro e misturá-lo com manteiga, cebola e uma seleção de especiarias, incluindo páprica, sal e pimenta. Para dar um toque regional, adicionaram um pouco de cerveja Weihenstephan, criando um sabor único e irresistível. O resultado foi o Obazdn – uma pasta que rapidamente conquistou os frequentadores do restaurante.

Hoje, o Obatzda é um item indispensável na Brotzeit, o tradicional lanche bávaro, servido nos biergartens e restaurantes típicos por toda a região.

Minha visita na Bayerische Staatsbrauerei Weihenstephan | Foto: Clay Schulze

MONUMENTO VIVO À HISTÓRIA DA CERVEJA

A história da Weihenstephan é um exemplo notável de como dedicação e persistência podem atravessar séculos. Desde sua fundação pelos monges beneditinos no século VIII, a produção de cerveja foi mais do que uma atividade econômica; era uma expressão de fé e resiliência.

Esses monges, enfrentando invasões, incêndios, epidemias e guerras, sempre encontraram forças para reconstruir o mosteiro e aperfeiçoar suas técnicas de fabricação.

Cada reconstrução não era apenas um recomeço, mas uma oportunidade de refinar o conhecimento acumulado, transformando desafios em inovações.

 

Clay Schulze (@clay.schulze) é Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino Liederkranz do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau