Por Andréa Leonora, Editora Coluna Pelo Estado
“É uma missão árdua que estamos conseguindo desempenhar com novas ferramentas, com análise de produtividade, com tecnologia”, Polícia Civil Por Elas
O que é, como funciona, o que já está sendo feito, quais os resultados e quais os desafios do programa da Polícia Civil de Santa Catarina que trata especificamente dos casos de violência contra a mulher. O Polícia Civil Por Elas agrega várias ações e foi detalhado para a reportagem da Coluna Pelo Estado pelo delegado-geral da instituição, Marcos Ghizoni.
Na conversa de quase uma hora em seu gabinete, ele fala de um tipo de crime que vem chocando a sociedade catarinense pelos números alarmantes – os crimes cometidos contra mulheres e os feminicídios. Santa Catarina registra, em média, 65 ocorrências de violência contra a mulher por dia. Das vítimas, 50% têm filhos com o agressor, 75% são companheira do agressor e 87,5% dos crimes ocorreram dentro de casa. A palavra chave do programa é antecipação, tendo como princípio que uma primeira atitude violenta do homem, se já for repreendida adequadamente, evitará um futuro espancamento ou assassinato. “O número de denúncias vai aumentar, porque estamos conscientizando para isso”, prevê Ghizoni.
[PeloEstado] – O que é o programa Polícia Civil Por Elas?
Marcos Ghizoni – O objetivo do programa é fazer com que a vítima, ao chegar a uma Delegacia da Mulher, tenha acesso a uma gama de serviços que atendam a suas próprias necessidades e a de seus filhos, mas que também envolva os agressores. Nós precisamos conversar com esses homens para mostrar que a mulher não é sua propriedade. A dinâmica social dos últimos anos foi muito rápida e nos impôs um ajuste de função que ultrapassou práticas que eram usuais. Não é mais “bateu, prendeu”. A prisão é de menor importância. Cometido o crime, é preciso dar suporte para que a mulher tenha condições de sobrevivência com seus filhos, ou que possa ir buscar seus pertences na casa do agressor sem sofrer mais violência, ou garantir medidas protetivas. Nossa equipe multidisciplinar, cada vez mais vocacionada, tem uma série de atribuições para lidar com as questões envolvidas na violência contra a mulher.
[PE] – Qual é o desafio?
Ghizoni – Tudo passa pela conscientização da vítima, para se perceber vítima, e do agressor, para se perceber agressor. E saber que buscar a polícia não vai trazer transtornos, mas ganhos. A violência contra a mulher que culmina com o feminicídio, começa muito antes, com a violência psicológica. É preciso barrar a evolução. Como eu disse, a Polícia Civil existe para atuar depois que o crime acontece. Então, é importante que tanto a vítima quanto o agressor e a própria polícia saibam que uma primeira piada ofensiva já é uma violência e, portanto, crime. Só assim se poderá conter a escalada da violência contra a mulher. Se um homem é reprimido quando pratica violência psicológica, não vai evoluir para uma agressão física e o feminicídio. Não se trata de cortar o mal pela raiz, mas resgatar os valores perdidos naquelas pessoas. Nossa intervenção tem que ser cirúrgica. Denunciar um agressor psicológico não significa sua prisão, mas pode significar sua recuperação. É sempre melhor responsabilizar um homem por uma lesão corporal caracterizada pela violência psicológica, com penas mais brandas, que podem ser alternativas ou cumpridas com tornozeleiras eletrônicas, do que por um feminicídio.
[PE] – Uma quebra de paradigma.
Ghizoni – Exatamente. Se um homem pratica uma agressão contra a sua esposa e não sente a mão do Estado chegando, é óbvio que o vizinho vai se sentir seguro para também agredir sua própria esposa. A certeza da punibilidade, já dizia Cesare Beccaria (1738-1794, cujas obras são a base do Direito Penal), é o que impede as pessoas de cometerem crimes. É uma missão árdua que estamos conseguindo desempenhar com novas ferramentas, com análise de produtividade, com tecnologia.
[PE] – Por exemplo?
Ghizoni – Até o final do ano, todas as unidades policiais de Santa Catarina terão o sistema de gravação audiovisual para coleta de depoimentos, que traz, além de muito mais agilidade nas delegacias, uma maior transparência para o Judiciário na análise do caso. Aliás, nós apresentamos o projeto ao Tribunal de Justiça que fez uma parceria e vai aplicar mais de R$ 1,9 milhão para garantir isso. Imagine um juiz analisando se vai conceder liberdade provisória para um agressor vendo o depoimento da vítima, ela mesma relatando o que aconteceu. Temos casos de mulheres denunciando estupros de ex-maridos e até de maridos. Uma coisa é você ler. Outra, muito mais intensa, é assistir ao que ela conta. Isso traz uma aproximação muito mais forte do Judiciário e do Ministério Público. Hoje, todas as nossas 30 regionais já têm pelo menos um sistema desses instalado, mas no total já são 50 já em funcionamento. A Delegacia da Mulher de Balneário Camboriú é um exemplo da eficiência desse sistema. A produtividade lá quintuplicou. Esse sistema já é usado para a lavratura do auto de prisão em flagrante, e nosso plano é de que no máximo em dois anos todo inquérito policial feito no estado seja por audiovisual e não mais digitado. Esse sistema demanda mais atenção e, com isso, a qualidade do trabalho melhora. Nada como assistir ao sofrimento de uma vítima e, por outro lado, a falta de arrependimento do agressor.
[PE] – A Polícia Civil teve que se ajustar com a Lei Maria da Penha?
Ghizoni – Antes as delegacias da Mulher tinham pouco movimento. As mulheres não tinham amparo e a violência ficava quase que às escondidas. Quando chega a Lei Maria da Penha, a Polícia Civil é chamada para fazer uma intervenção familiar, o que exige uma postura nova, porque qualquer ação nossa traz uma consequência. É muito comum se autuar no sábado à noite um marido que bateu na mulher e na segunda ela vir à delegacia pedindo a liberação daquele agressor porque está faltando dinheiro em casa. A polícia começa a entender que seu papel não é só policial, mas de conciliação. Não é à toa que a Polícia Civil de Santa Catarina é uma das únicas que tem o cargo de psicólogo. São psicólogos policiais, treinados na nossa Academia, com porte de arma e prontos para o enfrentamento da violência.
[PE] – O fato de as delegacias serem, na verdade, de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso não gera um emaranhado?
Ghizoni – Existe um movimento de separação desses assuntos. São Paulo e outros estados já estão criando delegacias exclusivas para o atendimento às mulheres. Em Santa Catarina nós não temos condições físicas para isso. E eu penso que o sucesso da Polícia Civil não está em desconcentrar as unidades, mas em concentrar. Tanto que defendemos a criação de Complexos de Segurança, onde todos os serviços da área estão em um único espaço, mas cada um com sua autonomia garantida.
[PE] – Como, então, as mulheres podem ser tratadas de forma diferenciada?
Ghizoni – Nosso planejamento é que as delegacias voltadas aos segmentos da sociedade que você citou tenham pelo menos dois delegados. Um dedicado, com sua equipe, a atender exclusivamente para aos casos de violência contra a mulher e Lei Maria da Penha. E outro para crianças, adolescentes e idosos. Até porque o adolescente infrator está relacionado a todos os tipos de crime e ele geralmente não é investigado, no máximo quando vem de reboque no crime de um adulto. Com essa separação, a ideia é trazer o foco para investigar o adolescente envolvido com crimes, com todas as ferramentas de que dispomos para a investigação de qualquer tipo de crime.
[PE] – O que muda para as vítimas?
Ghizoni – Passam a receber um atendimento totalmente especializado e dedicado. Através do nosso corpo seleto de quase 80 psicólogos policias, entendemos que é preciso conter o avanço da violência que só impacta quando chega ao feminicídio. Ou seja, quando se constata a violência física ou o assassinato de uma mulher, ela já passou por outros tipos de violência dos quais ela mesma se quer se dá conta (Veja a tabela ao lado). Quando o homem começa a subjugar a mulher, a determinar a roupa que ela pode ou não pode usar, onde e com quem pode ir, ele a está coisificando, transformando a companheira em um objeto que lhe pertence e que, por isso, maltratar ou matar é algo normal. Nós temos plena capacidade de alertar as mulheres sobre essa violência psicológica que precede a violência física. E o Tribunal de Justiça já aceita a violência psicológica como lesão corporal.
[PE] – A Segurança Pública de Santa Catarina, de um modo geral e mais especificamente a Polícia Civil, tem trabalhado com mais transparência. O que motiva esse comportamento?
Ghizoni – Nosso trabalho é garantir a maior fidelidade possível dos acontecimentos, doa a quem tiver que doer. Exatamente porque esses dados refletem os apontamentos das nossas diretrizes. Sem eles, não sei o que está acontecendo e não posso ajustar as estratégias. Santa Catarina é conhecida como o Estado com a maior transparência e com uma articulação cada vez maior com a própria imprensa para levar os resultados do nosso trabalho ao conhecimento da sociedade. É com esse trabalho que se amplia a sensação de segurança, pela demonstração de que há um trabalho sério sendo feito e com resultados efetivos. As pessoas precisam saber que há um Estado presente, evitando crimes e tomando as providências quando o crime acontece.
[PE] – Qual é o papel da Polícia Civil no contexto da Segurança Pública?
Ghizoni – É, ao mesmo tempo, a função e a dificuldade. A Polícia Civil existe, constitucionalmente, para atuar depois que o crime acontece. Na investigação e na identificação do ato ilícito, informações que são remetidas ao Judiciário. Paralelamente, é preciso ter a certeza da punibilidade, a forma mais eficaz de prevenção ao crime.
O que pensa o futuro governador de SC sobre o assunto?
Carlos Moisés da Silva, governador de Santa Catarina, falou com a Coluna Pelo Estado sobre este tema ainda durante a campanha. Relembre o que ele disse:
“Falar em importância da mulher na sociedade já é algo comum nos dias de hoje. Cada vez mais a figura feminina assume um papel de protagonista e vem conseguindo aumentar seu espaço nas estruturas sociais. Nos últimos 12 meses, mais de 40 mil mulheres foram vítimas de violência em Santa Catarina e este dado não só nos preocupa, como alerta para que mudanças sejam feitas rapidamente na busca de se preservar a vida da mulher. Recentemente, a Polícia Militar lançou um programa chamado Rede Catarina de Proteção à Mulher e este é um dos quais estaremos valorizando e fomentando. Além disso, iremos criar delegacias específicas para atendimento da mulher, que irão proporcionar uma atenção rápida, uma proteção policial e um trabalho focado na prevenção, dando mais acessibilidade de intervenção policial.”