
A Oktoberfest transcendeu suas fronteiras bávaras para se tornar um dos maiores eventos do calendário mundial. Anualmente, milhões de pessoas convergem para Munique, para experimentar a atmosfera de suas tendas gigantes, a música alemã e a renomada cerveja bávara. Cidades ao redor do mundo replicam o evento, consolidando-a como um embaixador da cultura alemã. Contudo, por trás da grandiosidade contemporânea, esconde-se uma origem surpreendentemente romântica e politicamente astuta: um casamento real.
A união do Príncipe Herdeiro Ludwig e da Princesa Therese, em 1810, não apenas celebrou o amor, mas plantou as sementes de um festival que evoluiria de uma festa cívica para um fenômeno global, refletindo e moldando a própria identidade bávara.
Para compreender a magnitude daquele evento, é preciso voltar ao início do século XIX. A Baviera, elevada a reino em 1806 sob a influência de Napoleão Bonaparte, era uma nação jovem, buscando consolidar sua identidade e unidade. As Guerras Napoleônicas haviam redesenhado o mapa da Europa, e a aliança com a França trouxe tanto prestígio quanto instabilidade. Nesse cenário de autoafirmação, o casamento do futuro rei transcendia a esfera pessoal; era uma oportunidade de ouro para a monarquia se conectar com seu povo, celebrar a recém-adquirida soberania e forjar um sentimento de orgulho nacional. A festa que se seguiu, portanto, nasceu com um propósito duplo: festejar os noivos e, fundamentalmente, festejar a própria Baviera.
UM ENLACE QUE FORJOU A IDENTIDADE BÁVARA
O epicentro de tudo foi a união entre o Príncipe Herdeiro Ludwig Carl August, futuro Rei Ludwig I, e a Princesa Therese Charlotte Louise de Saxe-Hildburghausen. O contrato de casamento foi assinado em 12 de fevereiro de 1810, mas a cerimônia foi estrategicamente marcada para meses depois. O casamento foi celebrado em 12 de outubro de 1810, uma data de profundo simbolismo, pois coincidia com a celebração do aniversário do pai de Ludwig, o Rei Max I Joseph. Essa escolha deliberada conferiu um peso dinástico ainda maior à celebração, entrelaçando o futuro da monarquia com a popularidade do rei reinante. A união era mais do que uma aliança entre duas casas nobres; para um reino que existia há apenas quatro anos, era a primeira grande oportunidade de se apresentar como uma nação unificada e envolver a população em uma celebração de escala inédita.
A cerimônia religiosa ocorreu na Capela da Corte (Hofkapelle) dentro da Residenz de Munique, o palácio real. Foi um evento de grande pompa, mas restrito à nobreza e aos altos dignitários. A verdadeira intenção da coroa, no entanto, era estender a festa para além dos muros do palácio. O reino recém-formado precisava de símbolos que o conectassem ao seu povo, e o casamento de seu herdeiro provou ser o catalisador perfeito. A festa não era apenas sobre os noivos, mas sobre a construção de uma memória coletiva, um ato inaugural que, sem que ninguém soubesse na época, daria início à maior festa popular do mundo.
Imediatamente após a cerimônia, Munique foi transformada em um palco de luzes e alegria que duraria cinco dias. Ao anoitecer do dia 12 de outubro, sinos de todas as igrejas da cidade tocaram e salvas de tiros foram ouvidas, anunciando o início das festividades populares. Fachadas de prédios públicos e residências privadas foram adornadas com iluminação especial, e os cidadãos mais abastados competiam pela decoração mais deslumbrante. O banqueiro Andreas von Dall’Armi, uma figura central na criação da festa, chegou a decorar sua casa com uma estátua alegórica da Baviera, demonstrando o fervor patriótico que o evento inspirava.
A generosidade da coroa foi o motor da celebração popular. Durante os dias de festa, comida e bebida foram distribuídas gratuitamente à população em diversas praças da cidade. Registros da época detalham a distribuição de milhares de pães, quilos de queijo suíço e montanhas de salsichas, acompanhados por hectolitros de cerveja e vinho, garantindo que todos, independentemente da classe social, pudessem participar do júbilo. Músicos se apresentavam pelas ruas, e a cidade inteira respirava um clima de festival, unindo a corte e o povo em uma comemoração compartilhada.
O clímax das festividades, no entanto, não aconteceu nos salões do palácio, mas em um campo aberto nos arredores da cidade, no dia 17 de outubro. Foi lá que a celebração atingiu seu ápice com uma grandiosa corrida de cavalos, marcando a transição definitiva de um evento da corte para uma celebração verdadeiramente cívica. Este evento final, aberto a todos, selou o sucesso das comemorações e plantou a semente para a repetição anual da festa, garantindo que o casamento de Ludwig e Therese fosse lembrado não apenas como uma união real, mas como o nascimento de uma tradição imortal.

A CORRIDA QUE DEU LARGADA À TRADIÇÃO
Embora hoje a Oktoberfest seja lembrada por suas tendas de cerveja, sua primeira edição teve como grande atração uma corrida de cavalos. A ideia partiu de Franz Baumgartner, cocheiro contratado, apaixonado por cavalos e membro da Guarda Nacional de terceira classe — ou seja, um miliciano comum, sem grande prestígio social. Ele sugeriu ao seu comandante, o major da cavalaria e banqueiro Andreas Michael Edler von Dall’Armi, que o casamento do príncipe herdeiro Ludwig com Therese poderia ser celebrado com mais emoção se fosse marcado por uma animada disputa equestre.
Dall’Armi percebeu a oportunidade. Ao apresentar a proposta à família real, trouxe consigo doações já coletadas para viabilizar o evento, o que tornava o projeto ainda mais atraente. O rei Max I Joseph autorizou prontamente a construção de um hipódromo improvisado “atrás do novo hospital até a vila de Sendling”. Era uma situação de benefício mútuo: Dall’Armi conquistava o favor da corte, a realeza recebia um espetáculo capaz de unir o povo em torno da nova Baviera, e Baumgartner via sua paixão pelos cavalos transformada em uma corrida histórica.
Marcada para 17 de outubro de 1810, apenas cinco dias após o casamento, a corrida remeteu às antigas “corridas escarlates” medievais, em que cavaleiros disputavam um pano vermelho como prêmio. O esporte equestre vivia um renascimento no início do século XIX, combinando o prestígio aristocrático e militar com as raízes rurais e até mesmo o gosto burguês pelos cavalos como meio de transporte. A corrida, portanto, condensava símbolos de tradição, poder e modernidade, reunindo todos os elementos que a monarquia desejava exibir naquele momento.
O dia começou com uma missa solene, seguida por uma procissão da Guarda Nacional e de tropas militares que conduziam a família real até o prado escolhido. Antes da largada, 16 pares de crianças representando diferentes regiões da Baviera desfilaram diante do rei e da princesa, vestidas em trajes típicos. Ofereceram flores e frutos como em uma festa da colheita e recitaram versos de homenagem, numa encenação cuidadosamente planejada para exaltar a unidade e a identidade do jovem reino — uma verdadeira “campanha de imagem”, como se diria hoje.
A corrida em si foi acompanhada por cerca de 40 a 50 mil pessoas, acomodadas em uma colina que servia de arquibancada natural, abaixo do local onde hoje se ergue o Ruhmeshalle (Hall da Fama). Os Wittelsbachs, por sua vez, assistiam confortavelmente de um pavilhão elegante, enquanto 30 cavaleiros percorriam os mais de 3.000 metros da pista. O grande vencedor foi justamente o cavalo de Franz Baumgartner, consagrando o cocheiro-miliciano como protagonista inesperado da festa. O sucesso do evento foi tão marcante, e a adesão popular tão calorosa, que rapidamente se decidiu repetir a celebração no ano seguinte — e, sem que ninguém imaginasse, estava lançada a tradição da Oktoberfest.

THERESIENWIESE: A MEMÓRIA VIVA DE UM CASAMENTO
O local escolhido para a grande corrida de cavalos de 1810 não era apenas um campo qualquer. Era um prado aberto localizado fora dos portões da cidade, que rapidamente se tornou o coração pulsante da celebração. Em uma homenagem direta à noiva, a Princesa Therese, o local foi batizado de “Theresens Wiese” (Prado de Therese) já em 1810, com permissão real. Com o tempo, o nome evoluiu para a forma mais elegante “Theresienwiese”, que permanece até hoje e é carinhosamente abreviado pelos locais como “Wiesn”.
A nomeação do local foi um ato simbólico poderoso. Ligou permanentemente a origem da festa à figura da princesa herdeira, imortalizando o casamento real na própria geografia de Munique. O que antes era uma área de pastagem desolada foi transformado em um espaço de celebração popular, o palco oficial da Oktoberfest. A colina em uma de suas bordas, que serviu de arquibancada natural na primeira corrida, demonstrou o potencial do local para grandes eventos públicos. Ao longo do século XIX, o Theresienwiese foi gradualmente adaptado para acomodar um número crescente de visitantes, com a instalação de estruturas temporárias que, mais tarde, dariam lugar às famosas tendas de cerveja.
QUANDO A OKTOBERFEST SE TRANSFORMOU EM CELEBRAÇÃO POPULAR
O sucesso da primeira corrida de cavalos em 1810 foi tão grande que no ano seguinte a festa foi repetida, desta vez com uma novidade: a participação ativa da classe camponesa. A recém-criada Associação Agrícola da Baviera, fundada em 1810 por iniciativa do rei Max Joseph I, assumiu a organização do evento em 1811. O objetivo era claro: usar o festival como plataforma para promover práticas modernas de agricultura e valorizar o trabalho rural, em um momento em que a secularização havia transformado profundamente as condições do campo bávaro. Foi nessa segunda edição que a prova hípica foi acompanhada de uma exposição agrícola — uma forma de prestigiar o setor primário, que permanece simbolicamente presente até hoje nas carroças do desfile de abertura da Oktoberfest.
Nos anos seguintes, a feira agrícola ganhou cada vez mais relevância. Ela não apenas expunha animais, produtos e inovações, mas também premiava cidadãos exemplares e estudantes dedicados com medalhas de honra, enquanto camponeses que viajavam de regiões distantes recebiam o “Weit-Preis”, o prêmio de caminho. Entre 1811 e 1913, a Associação Agrícola foi a principal organizadora da festa, transformando o Wiesn em um espaço onde esporte, agricultura e identidade bávara se entrelaçavam. A cerveja, que ainda não era o centro da celebração, era vendida em pequenas barracas apenas a partir de 1818, junto com os primeiros carrosséis e atrações populares — marcos que dariam início à fusão entre tradição rural e entretenimento urbano.
Em 1819, veio a virada definitiva: a Oktoberfest foi declarada festival nacional anual, com a Prefeitura de Munique assumindo a organização e garantindo sua continuidade. A presença da família real permanecia constante, e a ausência de um monarca era sempre interpretada como sinal político. O pavilhão real continuou sendo, por décadas, o grande ponto de referência visual no Theresienwiese, reforçando o caráter dinástico que convivia com a popularidade crescente da festa. Foi nesse mesmo período que espetáculos inusitados começaram a aparecer, como o balão de gás da aeronauta Wilhelmine Reichard, que sobrevoou o festival em 1820, ampliando o caráter de atração pública.
O nome “Oktoberfest” surgiu pela primeira vez já em 1811, quando a festa foi transferida para outubro a fim de coincidir com os aniversários do rei e da princesa herdeira. Inicialmente, nomes mais solenes, como “Maximilianswoche” ou “Festival Nacional de Outubro”, buscavam reforçar o vínculo com a monarquia, mas aos poucos a designação popular prevaleceu. Em 1824, o termo apareceu oficialmente em um panfleto de programação e, nas décadas seguintes, consolidou-se no imaginário bávaro. Assim, em menos de duas décadas, a Oktoberfest havia se transformado de uma celebração de casamento em uma festa nacional do povo, onde agricultura, esporte, diversão e cerveja se uniam para dar forma a uma tradição que atravessaria os séculos.

DE EVENTO DA CORTE A PATRIMÔNIO DO POVO
Um marco decisivo na história da Oktoberfest ocorreu em 1819. Até então, a organização estava a cargo de entidades como a Associação Agrícola, mas dificuldades financeiras e organizacionais ameaçaram o cancelamento da festa naquele ano. Em uma decisão rápida e crucial, a prefeitura de Munique interveio e assumiu a responsabilidade total pelo evento, tanto na organização quanto no financiamento. Essa mudança, que permanece em vigor até hoje, foi fundamental para a sobrevivência e consolidação do festival.
A municipalização da Oktoberfest representou a transição final de um evento de origem real para um patrimônio público da cidade de Munique. A festa deixou de depender exclusivamente do patrocínio da monarquia ou de associações privadas e passou a ser uma celebração garantida pela administração municipal. Isso assegurou sua continuidade anual e permitiu um planejamento mais robusto, abrindo caminho para a expansão e popularização que se seguiriam nas décadas seguintes. A festa agora pertencia oficialmente ao povo de Munique.

DE UM CASAMENTO À TRADIÇÃO ETERNA
A Oktoberfest, o maior festival folclórico do mundo, nasceu de uma celebração que foi, ao mesmo tempo, pessoal e política. O casamento de Ludwig e Therese em 1810 simbolizou não só o amor de um casal, mas também a tentativa de um jovem reino, moldado pelas transformações napoleônicas, de afirmar sua identidade diante da Europa. A corrida de cavalos que inaugurou a festa se multiplicou em desfiles, feiras agrícolas e barris de cerveja, transformando-se, pouco a pouco, em um espelho da alma bávara.
O que começou como um gesto de união dinástica evoluiu para uma tradição popular capaz de reunir milhões. E assim, a cada setembro, Munique renova a memória de seu nascimento político, celebrando não apenas a cultura da Baviera, mas também sua resistência em permanecer fiel às próprias raízes.

Clay Schulze (@clay.schulze) é Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino Liederkranz do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau
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