Em 2024, o mundo celebra os 200 anos da estreia da Sinfonia nº 9 em Ré Menor, Op. 125, de Ludwig van Beethoven, uma das composições mais populares e emblemáticas da história da música. Apresentada pela primeira vez em 1824, em Viena, essa obra monumental transcendeu o campo musical para se tornar um símbolo de valores universais, como a fraternidade e a união entre os povos. A sinfonia é amplamente reconhecida como o ponto culminante da música clássica ocidental, marcada por sua inovação e impacto cultural.
Essa celebração dos dois séculos de existência da Nona Sinfonia ressalta não apenas a genialidade de Beethoven, mas também a resiliência de sua mensagem ao longo do tempo. Criada em um período de grandes adversidades pessoais e sociais, a obra é um testemunho da capacidade do ser humano de transformar desafios em arte atemporal.
UM GÊNIO EM MEIO À ADVERSIDADE
Beethoven vivia em Viena desde 1792, quando deixou Bonn, sua cidade natal, para buscar uma carreira como compositor. Embora tenha alcançado fama internacional, na década de 1820 ele enfrentava dificuldades. Sua surdez completa, um desafio devastador para qualquer músico, o isolou socialmente, e sua música havia perdido popularidade entre os vienenses, que preferiam o estilo italiano de compositores como Rossini. Além disso, ele lidava com problemas financeiros e disputas familiares, especialmente em relação à tutela de seu sobrinho.
Nesse contexto, Beethoven considerou estrear sua nova sinfonia em Berlim, onde acreditava que seu trabalho seria mais valorizado. No entanto, um apelo de membros da comunidade musical vienense o convenceu a mudar de ideia. A estreia aconteceu no Teatro Kärntnertor, em Viena, no dia 7 de maio de 1824, marcando seu retorno triunfal aos palcos da cidade após 12 anos de ausência.
A COMPOSIÇÃO DA NONA SINFONIA
A Nona Sinfonia é revolucionária em diversos aspectos. Estruturada em quatro movimentos, ela incorpora uma orquestra, um coro e quatro solistas vocais no último movimento, algo inédito na época. Este movimento final é baseado no poema Ode à Alegria, que celebra a fraternidade e a união entre os povos. Beethoven transformou esse texto em um hino à humanidade, acompanhado por uma melodia cativante que transcendeu barreiras culturais.
Ao contrário da sequência tradicional de movimentos de sua época — rápido, lento, minueto/scherzo, rápido —, Beethoven inovou na Nona Sinfonia ao inverter a ordem, colocando o scherzo antes do movimento lento. Essa escolha influenciou muitos compositores do período romântico. A orquestra foi expandida com a inclusão de novos instrumentos, como a flauta piccolo, o contrafagote (já utilizado na Quinta Sinfonia), trombones (presentes também na Quinta e Sexta Sinfonias) e um quarteto de trompas. No movimento final, a instrumentação foi ainda mais enriquecida com percussões adicionais (bumbo, pratos e triângulo), além da introdução de solistas vocais e de um coro misto.
Cada movimento da sinfonia é uma obra-prima em si. O primeiro, um allegro ma non troppo, é grandioso e dramático. O segundo, um scherzo, destaca-se por sua energia rítmica e inovação. O terceiro, um adágio, é lírico e introspectivo. O quarto movimento, porém, é o mais notável, tanto pela inclusão de vozes quanto por sua estrutura única. Nele, Beethoven revisita temas dos movimentos anteriores antes de introduzir a célebre melodia da Ode à Alegria, criando uma narrativa musical coesa e emocionalmente impactante.
A NOITE QUE MUDOU A HISTÓRIA DA MÚSICA
A estreia da Nona Sinfonia ocorreu em 7 de maio de 1824, no Teatro am Kärntnertor, em Viena. O evento atraiu uma plateia ilustre, composta pela elite cultural e aristocrática da cidade, totalizando cerca de 2.000 pessoas. A expectativa não se devia apenas ao longo intervalo desde a criação de sua última sinfonia, mas também ao fato de que Beethoven não se apresentava naquele palco há 12 anos.
O concerto, organizado pelo próprio Beethoven, começou com a execução da abertura Die Weihe des Hauses, op. 124, seguida por trechos da Missa solemnis, op. 123. Após um intervalo, o momento mais aguardado da noite chegou: a primeira apresentação da Nona Sinfonia, op. 125.
No palco, os solistas Henriette Sontag (soprano), Caroline Unger (contralto), Anton Haizinger (tenor) e Joseph Seipelt (barítono) desempenharam um papel crucial na performance do último movimento, que inclui vozes e coro. A regência oficial foi conduzida por Michael Umlauf, enquanto Beethoven, completamente surdo, insistiu em “conduzir” a execução, mesmo incapaz de ouvir a música. Ciente das limitações do compositor, Umlauf havia orientado os músicos a ignorarem os gestos de Beethoven, que frequentemente perdiam a sincronia com o andamento.
Durante a apresentação, a plateia, emocionada, interrompeu diversas vezes com aplausos entusiásticos. Ao término do grandioso último movimento, o teatro explodiu em aclamações. Beethoven, alheio aos sons ao seu redor, permanecia de costas para o público até ser tocado no ombro por Caroline Unger, que o girou para que visse o fervor da audiência. O compositor emocionado agradeceu com uma reverência profunda.
Embora incapaz de ouvir a sinfonia ou o entusiasmo estrondoso da plateia, Beethoven havia concebido cada nota em sua mente. Naquela noite, ele provou que sua genialidade transcendia as limitações físicas, entregando ao mundo uma obra que redefiniu a música e inspirou gerações.
O jornal de maior circulação da Áustria escreveu de forma entusiasmada sobre a estreia:
“No dia 7 de maio, foi realizado no Teatro Imperial e Real da Ópera um grande evento musical: Beethoven promoveu uma grande academia musical e apresentou de sua composição uma grande abertura, três hinos (trechos de sua nova missa) e uma grande sinfonia, com vozes solo e coro no final, baseados no poema An die Freude de Schiller. As vozes solo foram interpretadas pelas senhoritas Sonntag e Unger, e pelos senhores Haitzinger e Seipelt. O senhor Schuppanzigh dirigiu a orquestra, enquanto o maestro Umlauf coordenou a execução geral. O coro e a orquestra foram reforçados pela associação musical. O próprio compositor participou ativamente da direção. Os preços dos ingressos foram os habituais, e o teatro estava muito cheio. O público recebeu o grande herói musical com enorme entusiasmo, ouviu suas maravilhosas e gigantescas criações com a máxima atenção e irrompeu em aplausos vibrantes durante cada movimento e repetidamente ao final. […] Beethoven elevou, com sua sinfonia, este gênero composicional a um nível tão alto nas criações artísticas humanas que, desde então, qualquer compositor enfrenta grande dificuldade em alcançar tal ápice.”
Em razão da alta procura, o concerto foi realizado novamente em 23 de maio, desta vez no Grande Salão Redoutensaal da Hofburg, com um programa levemente alterado. A segunda apresentação suscitou debates sobre o local e a data, já que, inicialmente, considerou-se a possibilidade de ocorrer novamente no Teatro am Kärntnertor, possivelmente nos dias 18 ou 21 de maio.
A INSPIRADORA MENSAGEM NO QUARTO MOVIMENTO
Escrito pelo poeta alemão Friedrich Schiller, o poema “An die Freude” (“Ode à Alegria”) foi publicado pela primeira vez em 1785. Inspirado pelos ideais iluministas, o texto exalta a liberdade, a fraternidade e a união universal, valores profundamente revolucionários na época. Schiller enxerga a alegria como uma força capaz de unir a humanidade em harmonia e celebra a igualdade entre os homens diante da criação divina.
Beethoven admirava o poema há décadas antes de incorporá-lo à sua sinfonia. Ele já havia cogitado musicá-lo anteriormente, mas foi apenas na Nona Sinfonia que encontrou a forma ideal para expressar sua mensagem de forma grandiosa. No quarto movimento, o tema principal da melodia reflete a simplicidade e a universalidade do poema, criando um elo emocional imediato com o público.
Ao introduzir o poema na sinfonia, Beethoven transformou uma obra literária em um hino musical, elevando a mensagem de Schiller a um patamar universal. O resultado foi um movimento final que não apenas emociona, mas também inspira, ecoando os ideais de paz e fraternidade que permanecem relevantes até hoje.
IMPACTO CULTURAL E MUSICAL
Apesar do entusiasmo do público na estreia, a recepção crítica inicial à Nona Sinfonia foi ambivalente. Em Viena, um crítico elogiou a originalidade da obra, dizendo que ela competia com suas predecessoras sem ser ofuscada por nenhuma delas. No entanto, outros avaliadores, como os de Frankfurt em 1825, questionaram a presença do gênio de Beethoven na concepção da obra. Louis Spohr, por exemplo, criticou abertamente a sinfonia, considerando o quarto movimento monstruoso e sem gosto, enquanto Giuseppe Verdi achou o final mal estruturado. Mesmo com a divisão das opiniões, alguns reconheceram a grandiosidade da obra em seus desvios.
Com o tempo, a Nona Sinfonia se estabeleceu como uma obra fundamental da música sinfônica, sendo vista como uma grande inspiração para compositores como Anton Bruckner, Gustav Mahler e Johannes Brahms. No entanto, a inclusão de vozes na sinfonia continuou a gerar controvérsias, especialmente entre críticos na Alemanha, França e Inglaterra, que, além das críticas, ofereciam sugestões sobre o que, para eles, poderia ser melhorado na obra. A obra também foi celebrada por Richard Wagner, que a considerou uma “redenção da música” e a elevação da arte à sua forma universal.
O Ode à Alegria, com sua mensagem de paz e união, tornou-se um símbolo universal. Em 1972, o tema vocal principal do último movimento (Freude, schöner Götterfunken) foi declarado hino oficial pelo Conselho da Europa, sendo adotado pela Comunidade Europeia como o Hino da Europa em 1985. Também é frequentemente utilizado em eventos de organizações internacionais, como a UNESCO e Jogos Olímpicos.
A sinfonia também desempenhou um papel fundamental na história da indústria fonográfica. Na década de 1980, a duração dos CDs foi estabelecida para acomodar os 74 minutos da Nona Sinfonia, refletindo sua importância como obra-prima.
LEGADO PARA A ETERNIDADE
Mais de 200 anos após sua estreia, a Nona Sinfonia continua a inspirar gerações. Sua fusão de inovação técnica, profundidade emocional e mensagem humanitária transcende o tempo e as fronteiras culturais. Como disse o compositor britânico Gabriel Prokofiev, até mesmo gêneros modernos, como a música eletrônica, encontram inspiração na energia e no drama da obra de Beethoven.
Beethoven, mesmo enfrentando adversidades imensuráveis, transformou sua luta pessoal em arte. A Nona Sinfonia não é apenas um triunfo musical, mas também um testemunho do poder do espírito humano. Ela permanece como um hino universal à alegria, à fraternidade e à capacidade da música de conectar pessoas em todo o mundo.
A Nona Sinfonia foi a última sinfonia completa de Beethoven, um presente para a humanidade, de um homem incompreendido por ela. Confira a obra musical executada pela Berliner Philharmoniker e conduzida por Herbert von Karajan.
Clay Schulze (@clay.schulze) é Presidente Do Centro Cultural 25 de julho de Blumenau e integrante do Männerchor Liederkranz, Coro Masculino Liederkranz do Centro Cultural 25 de Julho de Blumenau