Após 53 anos do golpe, vítimas da ditadura militar ainda aguardam reparação

Processo do pai de Jalmir Fernandes foi deferido, mas pagamento de indenização ainda não aconteceu | Foto: Miriam Zomer/Agência AL
Processo do pai de Jalmir Fernandes foi deferido, mas pagamento de indenização ainda não aconteceu | Foto: Miriam Zomer/Agência AL

 

Jalmir Gibbon Fernandes (57) tinha 4 anos quando a saga de tortura e perseguição a sua família começou, em 1964. O pai dele, Ismail Fernandes, então chefe dos Correios e Telégrafos na cidade de Rio Grande (RS), foi preso pelo menos 12 vezes e torturado pelos agentes da repressão do regime militar sob o pretexto de ter relações políticas com Leonel Brizola e João Goulart. Era o início de um período sangrento e obscuro da história do Brasil, que durou 21 anos, de 1964 a 1985, e fez milhares de vítimas, entre pessoas mortas, perseguidas, torturadas e desaparecidas.

 

Comissão Nacional da Verdade apontou que houve 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura no Brasil. | Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

 

O golpe militar foi deflagrado há 53 anos, no dia 31 de março, e no dia seguinte, 1º de abril, o presidente João Goulart, democraticamente eleito, foi deposto e substituído no poder por uma junta militar. Os militares instauraram centenas de processos para apurar supostas atividades subversivas e milhares de pessoas foram atingidas em seus direitos: parlamentares tiveram seus mandatos cassados, cidadãos tiveram seus direitos políticos suspensos e funcionários públicos civis e militares foram demitidos ou aposentados, sob a justificativa de restaurar a disciplina e a hierarquia nas Forças Armadas e deter a “ameaça comunista”.

A Comissão Nacional da Verdade reconheceu em seu relatório final, em 2015, que houve 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no país. Entre essas pessoas, 210 são desaparecidas.

A família de Ismail Fernandes perdeu tudo naquele período, até mesmo a saúde mental. Jalmir recorda que o pai chegou a ser torturado em público, em frente à Prefeitura de Porto Alegre. “Imagine ver o seu pai ser torturado, sofrer afronta sexual e humilhação. Urinavam no rosto dele, estupraram minha mãe. Eu vi tudo isso, eram situações muito humilhantes. Toda a minha família sofreu”, relata. O telegrafista ficou sem emprego, perdeu a casa, primeiro violada e depois incendiada, e o automóvel, também incendiado. A família passou a depender de doações de cestas básicas para sobreviver.

Ismail Fernandes faleceu em 2002 sem ter recebido qualquer tipo de indenização. O processo dele foi julgado e deferido, mas o pagamento ainda não aconteceu. Jalmir insiste na busca por reparação e indenização para honrar a memória do pai. Ele também é autor de um segundo processo contra o Estado brasileiro, como vítima, por ter presenciado a tortura e ter sofrido as consequências da perseguição, que desestruturou e deixou sequelas psicológicas em toda a sua família.

A anistia

O advogado e professor Prudente Mello, doutor em Direitos Humanos e ex-conselheiro da Comissão da Anistia, instalada pelo Ministério da Justiça em 28 de agosto de 2001, explica que, infelizmente, o processo de transição política no país foi lento, gradual e seguro. “Seguro para aqueles que estavam implicados em toda a repressão. A lei da anistia é de 1979, depois veio a Constituição de 1988, com as disposições transitórias, e somente em 2002, com a Lei 10.559, começa o julgamento dos processos dos perseguidos políticos e a política de reparação memória e verdade. Estamos em 2017, passaram-se 16 anos da criação da comissão e não conseguimos julgar todos os processos.”

 

Advogado e professor Prudente Mello foi conselheiro da Comissão da Anistia | Foto: Eduardo G. de Oliveira/Agência AL

 

A Comissão da Anistia recebeu mais de 70 mil processos de pessoas perseguidas e lesadas nesse período de 1964 a 1985. “Obviamente, as famílias têm que ficar insatisfeitas, aquelas que não tiveram seus processos julgados”, opina Mello. Mas ele destaca que a Comissão da Memória e da Verdade colaborou muito para constituir e garantir que o Estado brasileiro não sofra de amnésia. “Que o Estado brasileiro permita que o processo autoritário seja lembrado, seja estudado, trabalhando com memória, verdade, reparação e justiça, e para a mudança das instituições e dos aparelhos autoritários que persistem ainda, porque ninguém tem dúvida de que se continua torturando em delegacias do país.”

Pelo menos dez pessoas foram assassinadas pela ditadura militar em Santa Catarina, e três continuam desaparecidas, conforme o relatório final da Comissão Estadual da Verdade, apresentado em 2015. Um dos desaparecidos é o deputado estadual Paulo Stuart Wright, de Herval do Oeste. “Até hoje a família não descobriu o paradeiro do corpo”, lamenta o deputado Dirceu Dresch (PT), que é membro da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Na opinião dele, a Lei da Anistia, aprovada em 1979, trouxe um benefício importante para as pessoas que estavam na clandestinidade. No entanto, ela não puniu os torturadores. “Esse é um debate que o Brasil precisa enfrentar porque as pessoas que mataram, que torturaram, especialmente militares, não sofreram a punição da lei. Isso é uma correção que ainda nos faz falta para podermos dizer que a democracia plena foi restabelecida.”

A democracia

Dirceu Dresch destaca a importância de defender a democracia. “A democracia é o modelo mais avançado em termos de liberdade, de participação social, de liberdade de expressão e organização. Todas as grandes conquistas sociais, trabalhistas e econômicas da população brasileira ocorreram na democracia.”

 

Deputado estadual Dirceu Dresch | Foto: Solon Soares/Agência AL

 

O professor Prudente Mello alerta que a democracia e os direitos sociais estão em risco novamente. “A democracia é um processo, pode haver avanços ou retrocessos. Eu creio que ingressamos agora num período de retrocessos.” Ele analisa que o golpe militar, em 1964, foi um golpe que também buscou diminuir direitos dos trabalhadores, isso aconteceu, por exemplo, com o fim da estabilidade no emprego. “O golpe militar não tinha apenas o interesse de atacar os comunistas. Os interesses do capital internacional se colocavam para reduzir os direitos dos trabalhadores. Lá em 1964 isso aconteceu e, se nós olharmos nos dias de hoje, com o golpe, que uns chamam de impeachment, a agenda não se modifica muito do que se colocou outrora.”

Mello cita a privatização da Petrobras, que já era pautada em 1964, a privatização de setores de energia elétrica e o ataque aos direitos dos trabalhadores como objetivos comuns nos dois períodos históricos. “Além do ataque aos direitos dos trabalhadores, há todo um conjunto de direitos sociais em cheque, a previdência, os direitos das mulheres e do público LGBT e as cotas”, exemplifica.

“A democracia está em retrocesso porque temos um congresso que sofre ilegitimidade, implicado em um amplo espectro de operações no mínimo suspeitas e votando matérias de essencial importância para o estado brasileiro. O capital internacional e o grande capital nacional têm sido protagonistas nesse processo, com seus interesses pautados”, analisa Prudente Mello.